Hoje
é dia sem palavras. Quero dizer que esta folha deveria ficar sem texto. Da cor
branca, que é a síntese de todas as cores.
Porque em menos de vinte e quatro horas
passaram dentro de mim todas as latitudes e longitudes do mistério da vida, caíram
nos meus braços os dois pólos extremos da geografia humana, toquei o zénite e o
nadir da condição existencial de todos os tempos. É, pois, da roda gigante da
história de todas e de cada pessoa que
hoje se me enche a alma e dela ouso
partilhar com quem me acompanhe no mesmo voo intimista.
É que, por imperativo da minha missão espiritual
e solidária, procedi entre sábado e
domingo ao baptismo de três crianças,
testemunhei desde a ara eucarística o juramento de um jovem casal que assumiu o
magno projecto de realização comum. E, na mesma sequência sacramental, celebrei hoje a última viagem de dois amigos que deixaram de fazer parte da nossa
comunidade. TUDO no mesmo templo e na mesma casa.
Enorme coincidência que, de tão
natural, se nos afigura tão estranha! Coube-me, em menos de vinte e quatro
horas, ler e sentir ao vivo a cartografia de toda a história humana. Desde o
nascimento à sepultura. Desde as suaves filigranas do berço até ao alcochoado e
pálido lençol com que se abafa quem se apresta a uma tão longa viagem.
Nascer, crescer e partir
definitivamente! Assim escreveram a sua biografia os sepultos de hoje: nasceram
entre cânticos matinais, casaram, lutaram e,
mais de oitenta anos volvidos, deixaram de ser inquilinos do planeta. E
aos infantes, recém-baptizados, olhei-os com ternura e segui-lhes a mesma sina:
crescerão, casar-se-ão, lutarão e daqui por mais oito ou nove décadas
calcorrearão a mesma estrada. E os outros e mais outros seguir-lhe-ão as
pegadas. Oh enigmática interminável trajectória em que estamos embarcados,
migrantes de todos os tempos!...
Prometi um texto sem palavras. Por
isso, deveria ficar por aqui, curtindo
no mais íntimo de mim mesmo esta paisagem lunar em que cada um de nós é protagonista. E isto me basta. Isto me interpela e me
sossega, na mesma estância.
Vou buscar o sossego no criador do “Livro do
Desassossego”, recupero o vigor
exaltante do círculo da vida e, como ele, concluo que no diâmetro da minha biografia – o marco do nascimento e a
marca da morte – “tudo o resto é meu”. Meu
o conteúdo, meu o miolo do grande cérebro da vida, meu o campo que me entregaram para
fazer a sementeira. Enquanto outros transformam o pão em pedras,
como nos avisa o “Imperador da Língua Portuguesa” , eu quero “transformar as
pedras em pão”, fazer dos espinheiros jardins
floridos e da rocha insensível e bruta jorrar
torrentes de águas cristalinas, certezas da fertilidade vindoura.
E isto me basta, interpela e sossega,
por entre o turbilhão desta roda gigante que nos tritura e nos enobrece, desde um extremo ao outro do indecifrável ciclo da
permanência existencial!
Por isso, já dirigi as consequentes
congratulações a quem se baptizou, a quem se casou e a quem, depois de cumprir
positivamente o seu mandato, nos deixou um testamento de optimismo e de
vitória.
07.Ago.16
Martins Júnior
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