Para quem gosta de olhar
para dentro de si e para fora, nunca lhe
falta inspiração nem escasseiam motivos
de conversação. E são tantos e tão cheios nesta altura como as gigas que
transportam uvas ao lagar. Hoje, precisamente, ao ritmo dos mercados onde se exaltam pernas e
cabeças, nada melhor que apreciar a fruta que o futebol nos oferece em hasta
pública. É que em 31 de Agosto fecha o leilão das transferências. E o que se
tem visto e ouvido na barafunda da praça do mercado nacional toma contornos
dignos de uma peça tragicómica.
No
dicionário de sinónimos do futebol profissional está mais que visto que o conceito de desporto foi substituído pelo de
máquina
de fazer dinheiro. As transferências e as trocas de camisolas fazem um
campeonato muito mais decisivo que os golos metidos nas redes adversárias. O
que conta são os milhões que a equipa vendedora amealha ou os mais que milhões que a turma adquirente prevê arrecadar. Neste
mercado livre, a inflação é campeã e rainha. Quanto mais alto subir a
bandeirada mais prestigiado é o clube. E o clube mais que o jogador. Não são
precisos parlamentos nem decretos nem válvulas de segurança para as linhas vermelhas. É o reino pré.histórico
do vale-tudo.
Já
uma vez tive ocasião de referir-me a toda uma linguagem do mercado da
escravatura: “ O jogador de cá foi vendido para lá por 30, 40 milhões, mais
tanto por ‘objectivos’… Outro está à espera de ser comprado pelos árabes… Por
tantos dólares levas este, por tantas libras ficas com aquele”. Senão quantitativa, ao
menos qualitativamente, reinaugurámos o mercado pós-esclavagista. E o escravo
ali está nas rotundas relvadas, desejoso de um cliente rico. que o meta na “limousine”
de uma grossa carteira bancária.
Mas, ainda assim, o “candidato-a-comprado-ou-
a-vendido” não é senhor do corpo que os pais lhe deram. Fica preso ao
senhorio-vendilhão que só o deixa sair
se e quando bem entender. Mais precisamente ao cofre do comprador. “Tens que
dar mais 5 ou 10 milhões, senão vendo-o
a outro”. Berra o leiloeiro agiota.
Debalde, entristece, esperneia e protesta o dono do próprio corpo contra
o dono da empresa. Nada o demoverá, senão a ambição do lucro fácil. “Ficas aí
como refém”. E o leiloeiro e seus comparsas “empresários”, insaciáveis e frios,
querem mais. Mesmo contra a vontade do
próprio, que só deseja valorizar-se e chegar mais além. O caso Adrien
impressionou-me vivamente. Não o
deixaram sair. Isto só me lembra, mutatis
mutantis, o tráfico de pessoas e não
só, em que a presa fica irremediavelmente na mão do explorador de carne humana.
Dir-me-ão que tudo isso
está coberto pela legalidade, pois corresponde
a relações contratuais de compra e venda. Mas é exactamente aí que se situa este
meu desabafo. Adeus futebol-desporto, adeus expressão genuína do ideal atlético.
Diante dos milhares de espectadores, entram nos estádios os novos gladiadores
do circo moderno, manipuladores da “roleta russa” que atrofia liberdades e
fabrica dinheiro nas arenas para fartar o bojo gordo dos ganadeiros.
Não está
nos meus intentos desgostar os amigos aficionados pelo futebol profissional, apenas
partilhar, se quiserem, o meu enfado perante os grandes “derbys” que passam nos
televisores. Do exposto lamento dizer que, nessas circunstâncias, em vez do
batimento do esférico no relvado, tudo me soa ao chocalhar do dinheiro caído na
roleta. E desligo o programa.
Enquanto
isso, para atravessar a ponte “impar” do
31 de Agosto e 1 de Setembro, deixo-vos as lágrimas de Slimani em Alvalade,
as quais, por um novo milagre do cartoonista, Carlos Laranjeira, transformaram-se em notas de milhares de libras com a efígie da
Rainha Isabel II. É a mitificação do futebol-negócio. Não vou por aí.
.
31Ago-1Set.16
Martins Júnior
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