(Arco da Festa do Santíssimo Sacramento ornamentado pelo senhor José de Sousa)
É
impossível ultrapassar a cerca do 15 de Agosto de 2016, sem passar por ela e parar. Quando digo “passar
e parar” quero dizer “pensar”. É como se na barreira que sinaliza este dia
houvesse um compulsivo STOP e não nos
deixasse ir ”além deste Bojador, sem passar além da Dor”, drama e
tragédia, fé e superstição, que
se desenham ao longo dessa estrada. O que hoje trago serão “variações” sobre um mesmo tema e, por isso, limitar-me-ei
a formular perguntas e reticências, cuja decifração pertence ao tamanho do
cosmos interior de cada indivíduo.
Amachucado
e estonteado por tudo o que, nestes dias, nos traz a todos amarrados ao cepo dos medos, das incertezas,
da expectativa de mãos sensíveis e humanas que venham levantar do chão os
pobres sem eira nem beira que saíram queimados das cinzas envolventes, eis que me deparo casualmente com a “manchete”
do jornal Le Figaro sobre as cerimónias de hoje na Basílica de
Lourdes, com a imagem em fundo, rodeada de multidões: “Cristãos: um 15 de Agosto de inquietação e recolhimento”.
Isso mesmo. Era o que eu pensava e
penso diante da paisagem sepulta do Funchal no rescaldo dos incêndios. Na
Basílica da gruta de Massabielle, a inquietação vem dos atentados em França e
dos “cristãos do Oriente, todos os dias, martirizados”.
Martirizados também foram os madeirenses, não pelos jihadistas, mas
pelos elementos da Criação, atiçados e desenfreados pela mão do homem, a qual o
Criador não conseguiu travar. E não só na Madeira. No Continente português. E
na Galiza. E perto de Marselha, em França.
Por esse mundo fora. Por isso, a palavra de ordem – “Recolhimento” – tem toda
a razão de ser e, daí, a determinação de
suspender as ruidosas encenações arraialescas nas comunidades afectadas pelos
incêndios. Por muitos pretextos que se embrulhem em sentido diverso, só um povo
sem coração seria capaz de sentir-se bem fazendo festa em casa alheia, despida
de tudo, mas cheia de lágrimas. A meu ver, todos os instrumentos de lume
deveriam apagar-se neste dia, pois o pavio que das velas se eleva para Deus tem
originado queimaduras insanáveis na paisagem e nas pessoas. Já aconteceu na
própria celebração religiosa do Monte.
Mas, além do “Recolhimento” há a “Inquietação”.
Devo novamente assumir aqui o quanto me inquieta a confusa e insidiosa mistura
que, em situações análogas, somos tentados a fazer, chegando ao cúmulo da
insolência, quando se enaltece a Deus e à Senhora pelas casas que ficaram de pé e, em subentendido mas lógico contraponto, se Os “culpa”
da destruição de pessoas e bens. A “Inquietação” converte-se em arrepio,
superior à minha sensibilidade. E, sobretudo, à minha Fé.
Quero encerrar depressa esta escrita. Porque
dois acontecimentos trágicos não me deixam continuar.
Do primeiro dá-nos conta a imprensa do continente: “Casal morreu na A1, em Coimbra, quando ia
a Fátima agradecer 30 anos de casados”. Um acidente brutal ceifou-lhes a vida.
Ambos do Marco de Canavezes: ele, de 56 anos; ela, de 54.
O segundo ainda tem o corpo quente do
trágico acidente dentro do túnel Machico-Porto da Cruz, aonde marido e mulher se tinham dirigido a
saudar a festa da Senhora de Guadalupe,
nessa freguesia. Lá foi o meu amigo José de Sousa, 70 anos de idade e 30 de
inteligência, energia laboral, dedicação
à Igreja e à sua comunidade. Inteligente, dinâmico e seguro, o construtor e
decorador dos lindos arcos verdes que abriam as nossas festas. Já não o teremos
para a Festa da Senhora, a pouco menos
de um mês.
“Recolhimento” pelas inditosas vítimas
da condução de terceiros. “Inquietação” por ver gente sem um pingo de humanismo que mistura a Justiça e a Bondade Divinas com ocasionais desvios de comportamento. Não me sai do
subconsciente aquela blasfémia do responsável máximo da religião madeirense,
quando, no 20 de Fevereiro de 2010, fechou os olhos a 42 vítimas mortais e
arvorou em milagre uma escultura da
Senhora da Conceição escapada das enxurradas…
Termino com as tais perguntas –
problemáticas, contrastantes, talvez duras para certas mentalidades, que admito
e respeito – mas que me parecem lógicas, incontornáveis, exigentes:
Será justo armarmo-nos em juízes de Deus, considerando-O salvador de
uns e, por omissão, perdedor de outros?
Será cristão fazer de Nossa Senhora “bombeira
generosa” de uns e, por omissão ou indiferença, “criminosa incendiária” de outros?
Será permitido atribuirmos a Deus e à
Senhora sentimentos de pérfida ingratidão para com os seus fiéis servidores,
deixando-os agonizar na estrada e, em contrapartida, deixando escapar os que
Lhes são frios ou adversos?
Finalmente, que lugar e que poder têm
Deus e a Senhora nos imponderáveis da vida dos mortais?
Numa palavra, qual é a nossa Fé?
Ajudem-me a encontrar respostas sérias,
seguras, e não paliativos de circunstância.
Por mim, fico-me lendo e pensando nas
leituras bíblicas deste 15 de Agosto. E vejo luz ao fundo deste labiríntico túnel.
15.Ago.16
Martins
Júnior
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