Era
minha intenção, hoje, “olhar com olhos de ver” a paisagem adjacente ao braseiro
destes dias – leia-se, comentários, palpites, críticas, planos e afins sobre as
desgraças que se abateram, faiscantes e devoradoras, numa outra
paisagem, a da Madeira e do Continente –
mas deparei-me com outros textos, tão contraditórios e incomodativos como
labaredas, que amanhã correrão pelos
templos, pelas rádios, jornais e televisões dos crentes. Trata-se da leitura de
Lucas Evangelista inserta, na liturgia deste 20º Domingo Comum.
Ei-lo:
“Eu vim ao mundo para pegar fogo à
terra. E o meu maior desejo é que se incendeie e alastre cada vez mais. (Lc. 12, 49).
Nesta altura, esperava-se tudo menos
isto. Nas igrejas, nos montes escalvados, na planície devastada… Onde tinha o
nosso J:Cristo a sua cabeça? – dirão os devotos. E até proporão se não seria
melhor trocar por
outro texto mais condizente com esta estação
tenebrosa em pleno verão.
Mas a “ira” do Mestre não fica por
aqui. Contrariando as sábias orientações do Papa Francisco, em Ano de
Misericórdia, ouviremos o eco vociferante, cavo e tremendo, do Mestre:
“Pensais
vós que eu vim trazer a paz à terra? Não,
o que eu vim trazer foi a divisão e a
luta”. (Ibid., 12, 51).
E,
sem deter-se um instante, como no mesmo
fôlego, situa o campo de luta encarniçada:
“Daqui
em diante, estarão cinco divididos debaixo do mesmo tecto, três contra dois e
dois contra três”. ((Ibid. 12, 52).
E
para que não restassem dúvidas no auditório esbraseado com tais imprecações,
identifica os litigantes:
“Doravante,
estará o pai contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a
filha contra a mãe; a sogra contra a nora, e a nora contra a sogra” (Ibid.12, 53)..
É
assim o nosso Líder. Frontal, destemido, coerente consigo próprio. Mas quem tal
diria?... É inesgotável a personalidade de J:Cristo. E tão diminuída é a imagem
que d’Ele fizeram!
Como
conciliar estas palavras de guerra de um incendiário compulsivo com a mansidão,
a ternura dos olhos doces do Nazareno, O que abraçava as crianças, juntava-se aos pecadores e acolhia as prostitutas?
...
Tamanha coragem e não menos perspicácia serão precisas amanhã para poder
servir tão pesada mensagem à mesa comum dos fiéis.
Por
hoje, apenas breves nota, possivelmente explicativas:
1ª
– Para entender as invectivas do Mestre, deverá o intérprete atento contextualiza-las, cotejando o capítulo anterior descrito pelo Evangelista,
ou seja a luta sem tréguas contra o obscurantismo
religioso e social, proclamado solenemente pelos fariseus e pelos
sumos-sacerdotes do templo de Jerusalém.
2ª
- É por demais evidente que este fogo e
estas guerras evangélicas não têm qualquer conotação física, mas
exclusivamente ideológica e existencial: é o combate em prol do esclarecimento
e da justiça social.
3ª
– Recorrendo aos lugares paralelos dos textos bíblicos, aliás, na decorrência
deste mesmo capítulo, o Mestre aponta sempre o caminho da reconciliação e da
paz, como o melhor elixir da saúde física, espiritual, individual e colectiva. (Cito, por todos, Mt. 5, 22-25). Foi
Agostinho de Hipona, o lumiar da Igreja, quem no século V, abriu a melhor
interpretação do texto com esta síntese magnífica: “Condena o pecado, mas ama o pecador”.
Insuperável
dilema este aos nossos olhos: separar o
crime do seu autor! Como condenar o roubo e “amar” o ladrão? Neste item, aperto a cabeça entre as mãos e
atiro-me em alta em voz às paredes do meu consciente:
Condenar
o terrorismo do Daesh e “amar” os assassinos?!...
Lutar
contra a corrupção e “amar” os corruptos?!...
Combater
o nazismo e “amar” os nazis?...
Abjurar
o farisaísmo e “amar” os fariseus dos
templos actuais?!...
Denunciar
a pedofilia e “amar” os pedófilos?!...
Exterminar
a prostituição e “amar” as prostitutas?!...
Acabar
com a exploração e “amar” os piratas dos offshores?!...
Cada
um de vós poderá ampliar este enigmático cardápio. No entanto, é isto que o
Papa Francisco não se cansa de dizer e fazer, em diversos quadrantes e
cambiantes das sociedades dos nossos dias.
Vai
longa esta reflexão. E inacabada. Talvez
que as reflexões mais prementes sejam aquelas cujas respostas suscitam novas dúvidas.
Em
jeito de provisória conclusão, ficamos a saber que o incêndio do nosso J: Cristo
é outro. E outra é a sua guerra. O sonho do guerrilheiro incendiário (e pelo qual pagou no patíbulo da cruz) é que toda a noite
de combate desponte como uma manhã de Páscoa. Ou, saboreando um fruto que é
muito nosso, que na ponta de cada espingarda
floresça um cravo de Abril!.
13.Ago.16
Martins Júnior
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