sábado, 13 de agosto de 2016

“INCENDIÁRIO E GUERREIRO”


            Era minha intenção, hoje, “olhar com olhos de ver” a paisagem adjacente ao braseiro destes dias – leia-se, comentários, palpites, críticas, planos e afins sobre as desgraças que se abateram, faiscantes e devoradoras,  numa  outra paisagem, a  da Madeira e do Continente – mas deparei-me com outros textos, tão contraditórios e incomodativos como labaredas,  que amanhã correrão pelos templos, pelas rádios, jornais e televisões dos crentes. Trata-se da leitura de Lucas Evangelista inserta, na liturgia deste 20º Domingo Comum.
         Ei-lo:
         “Eu vim ao mundo para pegar fogo à terra. E o meu maior desejo é que se incendeie e alastre cada vez mais. (Lc. 12, 49).
         Nesta altura, esperava-se tudo menos isto. Nas igrejas, nos montes escalvados, na planície devastada… Onde tinha o nosso J:Cristo a sua cabeça? – dirão os devotos. E até proporão se não seria melhor  trocar   por outro texto  mais condizente com esta estação tenebrosa em pleno verão.
         Mas a “ira” do Mestre não fica por aqui. Contrariando as sábias orientações do Papa Francisco, em Ano de Misericórdia, ouviremos o eco vociferante, cavo e tremendo, do Mestre:
“Pensais vós que eu vim trazer a paz à terra?  Não, o que eu vim trazer foi a divisão e  a luta”. (Ibid., 12, 51).
E, sem deter-se um instante,  como no mesmo fôlego, situa o campo de luta encarniçada:
“Daqui em diante, estarão cinco divididos debaixo do mesmo tecto, três contra dois e dois contra três”. ((Ibid. 12, 52).
E para que não restassem dúvidas no auditório esbraseado com tais imprecações, identifica os litigantes:
“Doravante, estará o pai contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora, e a nora contra a sogra” (Ibid.12, 53)..
É assim o nosso Líder. Frontal, destemido, coerente consigo próprio. Mas quem tal diria?... É inesgotável a personalidade de J:Cristo. E tão diminuída é a imagem que d’Ele fizeram!
Como conciliar estas palavras de guerra de um incendiário compulsivo com a mansidão, a ternura dos olhos doces do Nazareno, O que abraçava as crianças,  juntava-se aos pecadores e acolhia as prostitutas?  ...  Tamanha coragem e não menos perspicácia serão precisas amanhã para poder servir tão pesada mensagem à mesa comum dos fiéis.
Por hoje, apenas breves nota, possivelmente explicativas:
1ª – Para entender as invectivas do Mestre, deverá o intérprete atento  contextualiza-las, cotejando  o capítulo anterior descrito pelo Evangelista, ou seja  a luta sem tréguas contra o obscurantismo religioso e social, proclamado solenemente pelos fariseus e pelos sumos-sacerdotes do templo de Jerusalém.
2ª -  É por demais evidente que este fogo e estas guerras  evangélicas  não têm qualquer conotação física, mas exclusivamente ideológica e existencial: é o combate em prol do esclarecimento e da justiça social.
3ª – Recorrendo aos lugares paralelos dos textos bíblicos, aliás, na decorrência deste mesmo capítulo, o Mestre aponta sempre o caminho da reconciliação e da paz, como o melhor elixir da saúde física, espiritual, individual e colectiva. (Cito, por todos, Mt. 5, 22-25). Foi Agostinho de Hipona, o lumiar da Igreja, quem no século V, abriu a melhor interpretação do texto com esta síntese magnífica: “Condena o pecado, mas ama o pecador”.
Insuperável dilema este aos nossos olhos:  separar o crime do seu autor! Como condenar o roubo e “amar” o ladrão?  Neste item, aperto a cabeça entre as mãos e atiro-me  em alta  em voz às paredes do meu consciente:
Condenar o terrorismo do Daesh e “amar” os assassinos?!...
Lutar contra a corrupção e “amar” os corruptos?!...
Combater o nazismo e “amar” os nazis?...
Abjurar o farisaísmo  e “amar” os fariseus dos templos actuais?!...
Denunciar a pedofilia e “amar” os pedófilos?!...
Exterminar a prostituição e “amar” as prostitutas?!...
Acabar com a exploração e “amar” os piratas dos offshores?!...

Cada um de vós poderá ampliar este enigmático cardápio. No entanto, é isto que o Papa Francisco não se cansa de dizer e fazer, em diversos quadrantes e cambiantes das sociedades dos nossos dias.
Vai longa esta reflexão.  E inacabada. Talvez que as reflexões mais prementes sejam aquelas  cujas respostas suscitam novas dúvidas.
Em jeito de provisória conclusão, ficamos a saber que o incêndio do nosso J: Cristo é outro. E outra é a sua guerra. O sonho do guerrilheiro incendiário  (e pelo qual  pagou no patíbulo da cruz) é que toda a noite de combate desponte como uma manhã de Páscoa. Ou, saboreando um fruto que é muito nosso, que na ponta de cada espingarda  floresça um cravo de Abril!.
         13.Ago.16
       Martins Júnior   

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