Longe
estava eu de chegar ao Funchal e, de repente, cair da ponte abaixo. Por ironia,
chamava-se a Ponte da Saúde. Bem me lembro de atravessá-la uma e muitas vezes,
há quase setenta anos, quando descíamos do Seminário da Encarnação rumo aos “Viveiros”,
à Fundoa e demais estâncias circunvizinhas nos nossos passeios pedestres de
domingo.
Caí
da ponte abaixo pela simples razão-sem razão de ver que fora ela esquartejada,
desventrada, engolida pela fúria dos crânios pontiagudos que se passeiam na Quinta-Vigia.
Eis como os novos “vigias da Quinta” vigiam a nossa Saúde e a saúde dos ombros
que suportavam o arco da ponte centenária!
Venho
associar-me à consciência vigilante daqueles
que amam a cidade mais que a Quinta.
Vozes patrióticas que não se deixaram trair pelo mais fácil, pelo verniz que
luz mas não é ouro. Danilo Matos, Violante Saramago, Raimundo Quintal, Costa Neves, João
Baptista, José Luís Rodrigues, André Escórcio e outros madeirenses de gema, funchalenses
de fibra, para quem Ouro é a pedra secular, as mãos invisíveis dos construtores
de outrora, o testamento vivo das “Pedras que Falam”! São estas as salvas diamantinas
onde repousam os nossos pergaminhos. Mas aos herdeiros gratuitos e desnaturados
turva-se-lhes a vista e embota-se-lhes a sensibilidade para não verem que “um Povo sem Passado é um
Povo sem Futuro”.
Custa-me,
creiam, custa-me muito ter de recorrer a
um estranho magnata Al – Bu - Keq
das arábias para definir e abjurar a
surdez tacanha e a cegueira contumaz dos demolidores sem lei. Sem cultura. É
caso para bater à porta da Quinta e abrir o protesto: De que serviu mudar o
inquilino se é a mesma cama inculta e arrogante em que se deitam?... Que insensatez foi essa
de fazer orelhas de mercador aos mestres, técnicos, professores, arqueólogos,
historiadores, que têm a nobre missão de ver mais longe que os decisores de
bancada?!... Recordo-me de um já deposto
demolidor que um dia em Machico, em zona
histórica, ter-me sentenciado com supina
prosápia: “Devia-se tirar essa pedra daqui e deitar alcatrão em cima”. Escusado
será dizer que não lho permiti. É
deprimente ver gente responsável – tão irresponsável e cega – que preza mais o
betuminoso inaugurado na véspera do que a passadeira em pedra roliça que os
nossos antepassados nos deixaram como legado inter-geracional. Ao menos, nos
cenários que ainda restam do nosso passado histórico.
Do
pouco que deixei escrito subentende-se o muito mais que tinha para dizer. Por
isso, aqui me quedo. Desiludido. Concluo agora a sábia filosofia do ditado
popular: “Por melhor ninguém espere”. É pena. Cultura não é só o cosmopolita
festival de jazz ou os linguados parlamentares do fastio. É também a
preservação do património construído, o qual segundo Pedro Serra, “é o passado
que se torna presença e substantivação do presente”.
Perante
atitudes tão grosseiras quanto incompreensíveis numa democracia cultural, não
tenho outras palavras senão as de Almeida Garrett, já em 1835, quando nas Viagens
na minha Terra zurzia violentamente contra o vandalismo de certos
administradores do país (e o caso da Ponte da Saúde está no mesmo índex) culpando os governantes de Santarém pela
destruição do seu património histórico e
acusando-os de cederem ao “fanático
camartelo da ignorância” . Lamentavelmente, ontem como hoje.
Ponte
da Saúde que tornou mais doente a Cidade!
27.Ago.16
Martins Júnior
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