“Era uma vez”… Podia
começar assim a lengalenga de
hoje, tal como nos contos de fadas e
duendes. Mas não. Vou começar pelo “Foi uma vez”! O espanto da exclamação significa
um facto verídico e o apreço da sagacidade popular.
E
lá ai a história, que bem podia apresentar-se como um conto de natal, tão
diferente porque, aposto, talvez nunca ninguém contou outro igual.
Era
o malfadado tempo da colonia na Madeira, tempos duros de escravidão a que eram
submetidos os pobres camponeses, os “caseiros”. Entregavam ao senhorio metade
da produção agrícola, pagavam galinhas
pelo chão da palhota, a que chamavam casa. O mais típico e requintado,
neste caso, era a obrigatoriedade implacável de levar ao senhorio a papada do porco
que eventualmente fosse criado no terreno. A papada era considerada a parte
nobre e mais gostosa do bicho e, por isso, direito austero do amo. O caseiro e
os seus numerosos filhos bem desejavam em vão provar a cobiçada goela do suíno.
E o pai logo atalhou sem respirar fôlego
: “Ninguém lhe toque, o sr. administrador
do concelho, que é o nosso, mete a gente
na cadeia”
Falta completar o cenário
com esta notícia: A matança do porco era obrigatoriamente e religiosamente o
“Dia do Ó”, o 18 de Dezembro, nem antes nem depois, sob pena de sanção
superior.
Aqui
começa a trama, o argumento do filme.
José
era um miúdo franzino, o mais novo de
uma família de doze. A face e os olhos denunciavam um adolescente imaginativo e
perspicaz. “Pai, este ano vai-se comer a
papada do porquinho da festa. “Deus te
livre, cala-me prá í essa boca, diabos te levem” – intimou-lhe o pai. “O sr.
amo ainda manda prender a gente todos”. O rapaz, vencido mas não convencido, afastou-se,
resmungando para o inditoso porco: “Vais ver, vais ver”.
Três meses volvidos, vem
o nosso José, ousado e lampeiro, chega-se ao pai: “Olhe, este ano mata-se o
bicho uma semana antes do ‘Dia do Ó’. Vai-se ao chiqueiro, tira-se a porca
(afinal, era porca), veja lá: já não se aguenta em pé com as treze
arrobas que tem em cima do lombo. Tá gorda demais. Ah, e sou eu que vou levar a
papada à casa do sr. amo, lá na vila. Ele até pode-me dar dois tostões para a
festa”.
Dito e feito. Os irmãos a
postos, o pai ansioso por salgar a carne para o ano inteiro e da
gordura fariam banha. Feita a queima de pinheiro, o pobre ‘chico’ fica
opado, cortam-lhe a papada e na tarde desse dia lá vai o rapazito, “pernas para
que vos quero ”, mas sempre com o coração aos saltos, não fosse o senhorio
apanhar-lhe a marosca.
-
Senhor amo, meu pai mandou-me trazer a sua papada”. Abre, nervoso, a cesta e joga
para o mesão da cozinha o pesado tributo, com um estrondo que assustou o
próprio dono da casa. “ Então, seu fedelho, nem sequer tiras o barrete ao teu senhorio?”.
Tremendo
de medo, atira o boné ao chão. E o latagão, sentado à secretária velha, desconfia e indaga com o pequeno: “Mas, como
é isto? Ainda falta uma semana para o “Dia do Ó”.
-
Ah, sr. amo (e dobra-se todo),
esqueci-me de dizer que meu pai tinha a
porca doente e matou hoje de manhã, prá gente aproveitar alguma coisa..
-
Seu malandro - levanta-se irado o homem,
mais opado que a porca do caseiro. Vou-te mandar já para o calabouço.
O
pequeno treme, treme, ajoelha-se diante do administrador e chora como uma pecadora arrependida.
-
Desaparece com isso daqui. Então tu vens matar-me com carne gangrenada? Vou-te matar
aqui dentro. E a seguir vem o teu pai.
Enquanto o senhorão vociferava,
o miúdo aperta com as mãos a apetecida
papada dentro da cesta e, ao último berro autoritário, fisgou-se porta fora, meteu-se
pela ribeira que lhe encharcava as pernas. Enfim, chegou a casa. E antes que o
pai lhe perguntasse pelo sr. amo, o rapaz abre a cesta de vime, como se fosse a
maior bola de ouro do mundo. “Eu não lhe
disse, pai, que este ano a papada era cá da gente. Pronto, tá aí.!
O aldeão sexagenário, temente ao senhorio
como se teme a Deus, baixou a cabeça,
cruzou os braços, boquiaberto: “Nunca pensei que fizesses isto, meu filho.
Agora é que vão ser elas”.
“Elas” ficariam para
outro dia. Mas nessa hora houve festa em casa, comeu-se a papada e até a lenha da cozinha ria-se estrepitosamente na lareira,
porque o pequeno José tinha enganado o
justiceiro dos camponeses, os espezinhados de outrora, pobres servos da gleba, seus avós
e tetravós.
Foi um Natal diferente, vitorioso,
com folias, machetes e cantigas ao
desafio, porque o José, o elo mais fraco, tinha quebrado a cerviz ao senhorio: “Ele
já comeu papadas a mais, gesticulava. E a gente aqui em casa, nunca lhe metemos
o dente. Vamos comer e beber e dar graças ao Menino Jesus por esta oferta”!
O que se passou depois
não vem ao caso. O certo é que, não obstante a pequena fraude do José, sempre ficaria na história a lição de que o
mais frágil pode ganhar ao mais forte, o mais pequeno pode derrubar o gigante,
como David a Golias. Nesse dia, José, o mocinho, tornou-se o rei da casa.
17.Dez.16
Martins Júnior
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