Se
tem um “tempinho” livre nesta azáfama da Festa anunciada, então fiquemos
juntos, rindo com a sátira da vida e aprendendo ou castigando os costumeiros abusos
a que nos afeiçoamos, sem dar por isso. É este um caso-tipo do velho adágio ridendo castigo mores.
No
último apontamento que aqui deixei, pretendi apenas recolocar o Natal na sua
matriz primeira, ou seja, o almejado sonho de um mundo novo, justo –
diferentemente da sua redução pura e simples ao folclore consumista dos
licores, dos foguetes, da carne de “vinha d’alhos”. Hoje, situo-me no lado
oposto da cena. Se ontem estranhei a deformação do Natal nas mais alienantes manifestações
profanas, agora divirto-me com o uso e abuso da crendice rasteira, não menos
alienante, que se apresenta sob o nome de Deus. Quem me trouxe a risada mefistofélica
do dia foi o jornal “Le Monde”, na análise às eleições de domingo passado, na
Áustria. Quando se temia a eleição do primeiro neonazi, um jovem, herdeiro do
despotismo hitleriano, eis que os
austríacos colocam no trono um ecologista, para mais, septuagenário. Até aqui, tudo bem, nada a opor
nem a contar. A contar, essa sim, é a
nota transcrita pelo matutino francês que passo a citar:
“O
FPO, partido do candidato da extrema
direita, Norbert Hofer, cometeu um erro, ao instrumentalizar a religião. O seu
slogan ‘COM A AJUDA DE DEUS’ causou o pânico nas pessoas. Foram numerosos os que apoiaram o ecologista Van der
Bellen, por causa disso”.
Que
grande Povo este! Fosse entre nós – e somos testemunhas disso – caía água benta
como chuva e, com ela, uma enxurrada de votantes, vivos e defuntos. Mas
passemos adiante. Porque o que me fez rir, de um gozo intraduzível, é que o
tiro saiu pela culatra. E mais: confirmei a convicção do abuso satânico e,
ainda por cima, indisfarçado com que o populistas manipuladores da opinião pública fazem do nome de Deus.
E não apenas, na política. Resumindo:
aquele padre que teve o desplante de atribuir os recentes terramotos na Itália
aos gays e afins, como castigo de Deus! Ou
o sobrevivente do recente desastre aéreo quando disse agradecer a Deus que lhe
segurou a vida. E os outros, as vítimas inocentes, foi Deus que lhes ceifou o
mesmo direito à vida?... Cuidado e “tento
na língua” e na consciência!... A
superstição, que é outra forma de abuso, entrou no linguajar quotidiano, em
expressões mecânicas, tais como: “O
exame vai correr bem, se Deus quiser. Vai
dar chuva (ou sol) se Deus quiser. Até amanhã, se Deus quiser”.
E
se o homem não quiser?... Ou o movimento
das galáxias?... Quanto desastre, quanta crueldade, quanto acidente e,
sobretudo, guerras, conflitos, doenças até, que nada têm a ver com Deus!... Foi
isto mesmo que observei à nossa diva fadista
Amália Rodrigues, no Porto Santo, aquando das filmagens das “Ilhas Encantadas”,
de Carlos Villardebô, já lá vão mais de cinquenta anos. Ao despedirmo-nos no
hotel, onde o nosso Grupo Folclórico actuava, Amália repetia religiosamente “Até
amanhã, se Deus quiser”. À minha observação, respondeu: “Sabe, padre, isto é um
hábito desde pequena e não consigo desfazer-me dele”. O dever de respeitar (e respeito-o) não nos
inibe o direito de pensar e ganhar conclusões lógicas, filosóficas, teológicas,
mais respeitadores que os “slogans” da
extrema direita austríaca: “Com a Ajuda de Deus”.
O automatismo gratuito e ofensivo chega
ao cúmulo de trocar a sequência temporal dos acontecimentos, como o daquele
futebolista que, após o jogo de que a sua equipa saiu vitoriosa, desabafou,
extasiado: ”Tive sorte. Marquei aquele golo, se Deus quiser”. Assim mesmo.
Rindo e pensando. Esta crónica, ao
ritmo do pulsar dos dias, serve-me de conclusão: ao mesmo tempo que se esconde
e esquece a grande mensagem natalícia sob as roupagens do consumismo efémero,
da mesma forma se censura a banalização da Divindade em assuntos que têm
exclusivamente a ver com a nossa responsabilidade individual e colectiva. Mais
que não seja, tenhamos cuidado com as palavras para não nos acontecer o que
sucedeu aos neonazis austríacos: Perderam “Com a Ajuda de Deus”…
07.Dez.16
Martins
Júnior
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