quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

DERROTADO “COM A AJUDA DE DEUS” --- ou --- O TIRO PELA CULATRA

    
    Se tem um “tempinho” livre nesta azáfama da Festa anunciada, então fiquemos juntos, rindo com a sátira da vida e  aprendendo ou castigando os costumeiros abusos a que nos afeiçoamos, sem dar por isso. É este um caso-tipo do velho adágio ridendo castigo mores.
         No último apontamento que aqui deixei, pretendi apenas recolocar o Natal na sua matriz primeira, ou seja, o almejado sonho de um mundo novo, justo – diferentemente da sua redução pura e simples ao folclore consumista dos licores, dos foguetes, da carne de “vinha d’alhos”. Hoje, situo-me no lado oposto da cena. Se ontem estranhei a deformação do Natal nas mais alienantes manifestações profanas, agora divirto-me com o uso e abuso da crendice rasteira, não menos alienante, que se apresenta sob o nome de Deus. Quem me trouxe a risada mefistofélica do dia foi o jornal “Le Monde”, na análise às eleições de domingo passado, na Áustria. Quando se temia a eleição do primeiro neonazi, um jovem, herdeiro do despotismo  hitleriano, eis que os austríacos colocam no trono um ecologista, para mais,  septuagenário. Até aqui, tudo bem, nada a opor nem  a contar. A contar, essa sim, é a nota transcrita pelo matutino francês que passo a citar:
         “O FPO, partido do candidato  da extrema direita, Norbert Hofer, cometeu um erro, ao instrumentalizar a religião. O seu slogan ‘COM A AJUDA DE DEUS’ causou o pânico nas pessoas. Foram  numerosos os que apoiaram o ecologista Van der Bellen, por causa disso”.
           Que grande Povo este! Fosse entre nós – e somos testemunhas disso – caía água benta como chuva e, com ela, uma enxurrada de votantes, vivos e defuntos. Mas passemos adiante. Porque o que me fez rir, de um gozo intraduzível, é que o tiro saiu pela culatra. E mais: confirmei a convicção do abuso satânico e, ainda por cima, indisfarçado com que o populistas manipuladores  da opinião pública fazem do nome de Deus.
         E não apenas, na política. Resumindo: aquele padre que teve o desplante de atribuir os recentes terramotos na Itália aos gays e afins, como castigo de Deus!  Ou o sobrevivente do recente desastre aéreo quando disse agradecer a Deus que lhe segurou a vida. E os outros, as vítimas inocentes, foi Deus que lhes ceifou o mesmo direito à vida?... Cuidado e  “tento na língua” e na consciência!...  A superstição, que é outra forma de abuso, entrou no linguajar quotidiano, em expressões  mecânicas, tais como: “O exame  vai correr bem, se Deus quiser. Vai dar chuva (ou sol) se Deus quiser. Até amanhã, se Deus quiser”.
E se o homem não quiser?... Ou  o movimento das galáxias?... Quanto desastre, quanta crueldade, quanto acidente e, sobretudo, guerras, conflitos, doenças até, que nada têm a ver com Deus!... Foi isto mesmo  que observei à nossa diva fadista Amália Rodrigues, no Porto Santo, aquando das filmagens das “Ilhas Encantadas”, de Carlos Villardebô, já lá vão mais de cinquenta anos. Ao despedirmo-nos no hotel, onde o nosso Grupo Folclórico actuava, Amália repetia religiosamente “Até amanhã, se Deus quiser”. À minha observação, respondeu: “Sabe, padre, isto é um hábito desde pequena e não consigo desfazer-me dele”.  O dever de respeitar (e respeito-o) não nos inibe o direito de pensar e ganhar conclusões lógicas, filosóficas, teológicas, mais respeitadores que os “slogans”  da extrema direita austríaca: “Com a Ajuda de Deus”.
         O automatismo gratuito e ofensivo chega ao cúmulo de trocar a sequência temporal dos acontecimentos, como o daquele futebolista que, após o jogo de que a sua equipa saiu vitoriosa, desabafou, extasiado: ”Tive sorte. Marquei aquele golo, se Deus quiser”. Assim mesmo.
         Rindo e pensando. Esta crónica, ao ritmo do pulsar dos dias, serve-me de conclusão: ao mesmo tempo que se esconde e esquece a grande mensagem natalícia sob as roupagens do consumismo efémero, da mesma forma se censura a banalização da Divindade em assuntos que têm exclusivamente a ver com a nossa responsabilidade individual e colectiva. Mais que não seja, tenhamos cuidado com as palavras para não nos acontecer o que sucedeu  aos neonazis  austríacos: Perderam “Com a Ajuda de Deus”…

07.Dez.16

         Martins Júnior

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