Matança
do porco, carne de vinha-de-alhos, chocalhos e búzios, licores, broas de mel, canja
de galinha e missa do galo… “Espectáculo”, diria o Gordo. É o Natal da barriga
folclórica que sai do genuíno aconchego familiar e salta para o adro da igreja
e alaga as atlântidas, as ondas hertzianas, os programas “super-educativos” cá
da ilha. Não só da ilha, mas de todas as janelas escancaradas dos
hipermercados, cada qual com a sua pirueta consumista. O povo gosta… e até precisa do estalar de copos e talheres
para fazer a Festa. Só faltava esta de vir o parteiro-governo fazer reclame e
sermão das “missas do parto”!
Sei bem que um programa de variedades
ou um arraial de pastores não são propriamente uma sala de retiro nem uma cela
contemplativa. Mas, pessoalmente,
incomoda-me esta overdose ensurdecedora
de massificação colectiva em que se pretende
comprimir o Natal. Pela minha parte, trago um brinde diferente – o único,
talvez, que confere com a história – e peço
licença para o colocar no pinheirinho, sempre verde, desta sala comum do “SENSO&CONSENSO”.
Será assim:
Há uma encruzilhada da história humana
em que o sonho e a realidade se encontram. E, ao mesmo tempo, se desencontram.
É a gruta, o pomar, o deserto, o casebre, chamado Natal. É também o rio que
desagua em delta. Ali a ficção de outrora, a ambição superna das gerações de
antanho, queda-se perante o acordar numa noite de invernia. Aí cantam (e brigam!)
duas figuras de proa da narrativa bíblica: Isaías e João, o Baptista. Isaías é
o sonho, tão vívido, frenético, colado ao mundo futuro como se ele fora
presente, expresso na ternura da ruralidade mais tocante:” O lobo será bem recebido
no currais dos cordeiros … as crias dos animais selvagens e as dos animais
domésticos pastarão juntas, lado a lado… a criança poderá meter a mão na toca
das serpentes venenosas sem que estas lhe façam mal algum”. Noutra visão
apoteótica, Isaías antevê, “com os próprios olhos”, que “nenhuma nação levantar-se-á
contra outra e que jamais os povos serão treinados para a guerra”.
Acabar-se-iam os exércitos e os soldados “transformariam as lanças de guerra em foices e relhas do arado”
para arrotear os campos. Enfim,
o sonho azul, ilimitado. Para quando? No
nascimento do Messias, o Natal.
Mas chega o Natal e o Baptista vê-se
cercado pelo logro. Cai na real. Afinal,
fora enganado pelo Livro, porque os “lobos-homens”
devoram os “homens-cordeiros”, a
cobardia farisaica afoga no silêncio a infância pura. Os profissionais
do Templo e os emissários do Imperador tramam na mesma cama a matança
dos inocentes. O Baptista desperta, atira o Livro de Isaías à torrente do rio
Jordão e descobre que é preciso agir, lutar, clamar, nem que seja no deserto. E
fê-lo tão arreigadamente que lhe cobraram a factura: a cabeça decepada sobre uma
salva de prata assassina, por ordem de Herodes.
E com o tal Messias Prometido foi aquilo que se viu. Do Taumaturgo das miragens
bíblicas fizeram um sem-abrigo de nascença e um indefeso Derrotado!
Mas isso é demais – dirão alguns. E os bolos,
os chocalhos, os licores, a matança do porco e a carne de vinha-de-alhos, vamos
jogá-los ao lixo? Afinal, não há Natal?!
Ao lixo, não. Mas definitivamente deixem
de entronizar o acessório em detrimento do essencial. Há sempre um tempo de
tréguas. Saudáveis e necessárias, mas nunca a servir de narcóticos, ainda que
folclóricos de circunstância. Porque, se as nuvens negras continuam a pairar sob o azul do firmamento aqui e mais
além, então todo o Natal será um postal e um apelo para cumprirmos nós, aqui e
agora, o sonho messiânico de Isaías.
Sem dramatismo forçado mas com renovada
coragem, acompanho o grito de Ary dos Santos, no fecho do seu poema “Kyrie”:
Em nome dos teus
filhos que esqueceste
Filho de Deus, que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo
Mas,
sei eu, que só voltará pela força da nossa mente e pela energia do nosso braço.
Natal Sempre!
05.Dez.16
Martins
Júnior
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