Alvíssaras
pelo parto de Jesus!... Eis-nos transfigurados, em bucólica levitação, levados
pela tradição, pelos avós e bisavós, que lá de longe, muito longe, um longe invisível, vêm sentar-se à
nossa mesa nesta estância aconchegada do Natal. Bom é passar o facho luminoso
das antigas gerações para que a ponte da história não se quebre, muito menos
por nossa causa. Não se sabe, porém, por que nesga de originalidade anteciparam
a folia para o dia 15, quando manda a tradição que seja o dia 16 de Dezembro:
os nove dias ininterruptos, como ininterrupta foi a gestação do Menino até à
hora em que nasceu.
Falei
em folia. E é assim mesmo. Saem à rua os pandeiros e as castanholas, os búzios
fazem o solo cavo, ao som das violas, rajões e acordeões. Os sinos acordam mais
cedo, depois de passar uma noite em claro para não deixar o sol sair antes do
seu lamiré precursor. A romaria enche a noite de artifício luminoso (nalguns
casos, até, de ribombo foguetório) e tira os vizinhos da cama… vamos prá festa,
prá romaria. E o templo da Virgem do Parto enche-se de fiéis à tradição. Só não
sei se a Parturiente fica sossegada com tamanho alvoroço, alegremente regado
com um fundinho de “macia” caseira. É o Povo, na sua genuína, intrínseca demonstração
de renovada vitalidade campestre, quase bíblica.
E
por tratar-se de um recanto singular, intimista, mas aberto a quem vier por bem, estranha-se a devassa publicitária com que se estardalhaça aos quatro ventos um gesto comunitário que só vive e sobrevive
pelo calor humano, pleno de verdade identitária do agregado que o constrói.
Choca-me quando ouço falar que os
governos ilhéus já servem no menu turístico as “Missas do Parto”, artificiando-as,
deformando-as, amputando-lhes os direitos de autor e consumidor de um Povo que
nada no ritual tradicional, seu, muito
seu, como o peixe na água.
Entendo
e sinto – porque é nessa praia que também mergulho nesta quadra, embora de
formato próprio do lugar onde habito – sim,
entendo que há certas manifestações que deveriam deixar ficar-se no seu
figurino endémico, que, como usa dizer-se, “não são para vender”, mas para
viver, sobretudo quando têm a ver com a crença e a religiosidade de quem com
elas se identifica.
Assim,
parece-me puxado pelos cotovelos esse projecto de candidatar a património
imaterial da humanidade as “Missas do Parto”. Respeito, mas confesso que
sentir-me-ia muito mal ziguezaguear num palco “para inglês ver”, quando é no
chão, ombro a ombro, coração a coração, no boca-a-boca das cantigas que dá
gosto em participar. Ali, dentro ou fora do templo, ninguém é espectador, todos
são intervenientes na fala, na prece e no canto. E se vamos pelo “exquis”
(desculpem mais este galicismo) e pelo folclore da coisa, então candidate-se o
arraial do Bom Jesus da Ponta Delgada, onde as pessoas pernoitam bem aguadas
debaixo das latadas. Ou a Festa dos Milagres. Ou da Piedade. Ou da Fátima. Há
um núcleo dinamizador em todas essas devoções que não se deve deixar estragar,
nem sequer macular com interesses mercantis e outros afins. É que, por este andar (longe de mim ofender o pudor de quem quer que seja)
qualquer dia o porco vai reclamar que a sua matança também tem pés para entrar
na Unesco e exigir tão cobiçado
galardão. É original, é típico, é tradição ( Credo, Abrenuntio!)
Têm
graça as “Missas do Parto”, mais que não fosse porque unem as pessoas do lugar
e realizam a osmose entre o sagrado e o profano. Os pagãos também o faziam com
os seus deuses, desde tempos imemoriais. Tudo o que concorre para juntar o
colectivo no mesmo abraço de festa, tudo é bom e inofensivo. Desde que não se incomodem
as fleugmáticas nuvens da noite com estampidos anti-natalícios que sobressaltam
os humanos que se sentem tranquilos nos “braços de Morfeu”.
Deixem
em paz a “Virgem do Parto”.
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No
próximo dia, rir-me-ei convosco por um episódio verídico, mas hilariante, que pertence
ao corpo da Festa e revela a sagacidade popular em tornear o nó górdio com que
os grandes deste mundo teimam em “sangrar” os mais pequenos.
15.Dez-16
Martins Júnior
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