Podia
começar assim o teatrinho de feira que nesta semana “azucrinou-me” (não vem no
dicionário erudito, mas está no expressivo glossário do povo), repito, “azucrinou-me”
os ouvidos, os olhos, a cabeça, ao ponto de ter que fechar as bocas das rádios
e as bocarras dos televisores. Até tenho a impressão que ninguém em Portugal se
lembrou mais do presépio. O presépio estava na “segunda circular”.. Desde o
alvor da aurora ao negrume da noite, era bola-bola-bola. Veio-me à ponta dos
cabelos a profissão de fé do devotíssimo Artur Semedo, de há décadas; “A minha
religião é o Benfica”.
Arrisco-me
a desiludir quem me lê, ao trazer a esta mesa - já adivinham – os futebóis.
Levem à conta de rábula revisteira esta jocosa elucubração. Mas não vejo outra
maneira mais eficaz de livrar-me da mais supina e vazia mediocridade com que me
obrigam a pagar a factura do meu áudio.visual.
A
avaliar pelo que nos serviram durante
horas sem conto, o presépio de muita gente esteve na Luz. A manjedoura brilhava
pela originalidade: de tipo rectangular, enorme, onde os fanáticos esperavam
deitar o menino. Em vez da vaca e do burro, lá estavam, de sentinela ao portão,
a águia e o leão. Receosos que fisgassem
os pobres bichos, os xerifes arregimentaram umas centenas de “gorilas” que, à
frente do grosso imprevisível, sustinham “o gado” (aqui cito a tirada satírica do nosso Eça)
assemelhando-se menos a uma legião de fãs ordeiros e felizes e mais às hordas bárbaras marchando contra as muralhas do Coliseu de Roma. Nem faltaram os três reis
que, sendo de primeira água, vinham pintados de preto. Os pastores corriam
desenfreados para a manjedoura, ora para um lado, ora para outro, enquanto o
coro infernal de 63.500 anjinhos caídos da abóbada vermelha faziam estremecer o
céu e a terra com brados e esgares à mistura com aleives às mães dos três reis,
imperadores da arena.
A cena não podia funcionar sem os profetas-exegetas,
juízes de fora ou “treinadores de bancada” – cada tribuna tem os seus
comentadores residentes – para medir a pontinha do dedo-à-bola ou bola-no-dedo,
a distância milimétrica entre a bota e a
perdigota, enfim, a palha e a chama que vão alimentar mais unas semanas, até
que venha outra.
Enfim, deixo à livre inspiração de cada
qual armar ou imaginar estes fanáticos presépios, sendo certo que cada terra
tem o seu (fuso e uso), conforme as circunstâncias, desde o mais galáctico
campeão até ao mais irrisório clube de bairro.
O que nesta rábula incompleta pretendo
comentar é a deturpação de valores, o sufoco inflacionário de uma actividade
que, estando vocacionada para o culto de uma saúde holística da sociedade, se
transformou no seu oposto. Ressalvo aqui dois votos positivos, civilizacionais,
expressos por alguém, ainda antes do famoso “derby”: Que no fim do jogo, os
dois treinadores dêem um ao outro um
amistoso aperto de mão (não sei se aconteceu) e que nenhum adepto perca a serenidade e o
equilíbrio psicológico, sabendo que, seja qual o resultado, ele não nos vai resolver nenhum problema nosso nem vai interferir
no dia-a-dia das nossas vidas. O sol voltará a nascer sempre, com vitória ou
com derrota.
E da minha parte: Que se construa
dentro da lapa de cada coração e de cada mentalidade o presépio invisível de um
Mundo Novo!
11.Dez.16
Martins
Júnior
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