Não
é só a Cidade nem é só a Diocese que guardam um vasto património de cinco
séculos. Há quem o tenha, também, esse património cinco vezes centenário - e mais surpreendente e valoroso, precisamente
por ter sido algemado e jogado como um demónio para o inferno que o império vaticano lhe cavou em vida. Tem por nome Martinho Lutero, o génio pioneiro em terras
germânicas, que abriu as portas do
pensamento e da liberdade, a partir de
Wittenberg, para a Europa e para todo o
mundo a haver.
Foi
na tarde de ontem que no Auditório da Reitoria da UMa se procedeu à gloriosa exumação
e se fez justiça àquele que afrontou a ditadura do obscurantismo e da hipocrisia reinantes na
perigosa passagem de nível da Idade Média para a claridade solar da Renascença,
entendida esta nos seus múltiplos contornos. Duas metas diversas foram
protagonizadas pelos intervenientes: uma estritamente histórico-crítica, da
responsabilidade dos Prof’s Dr’s Nélson Viríssimo e Viriato Soromenho Marques;
a outra, de tendência apologético-confessional, a cargo da Drª. Ilse Berardo, Rev.ma Pastora residente da Igreja Luterana do Funchal,
co-promotora do encontro, e do Bispo José de Ornelas, ilustre
madeirense ao serviço da Diocese de Setúbal.
Sem
desprimor para cada um dos oradores, foram os Mestres em História que, de uma forma límpida e transparente,
sintetizaram o contexto da época e relevaram a estatura moral, intelectual,
coerente e intrépida de Martinho Lutero. Com efeito, fomos descobrindo,
passo-a-passo, que Lutero não foi só o
opositor frontal ao Papado ou o destruidor da Igreja, como esta no-lo pintou,
ao longo dos séculos, representando Lutero, sempre de martelo na mão, afixando
as suas famosas 95 teses no castelo de Wittenberg em 31 de Outubro de 1517,
véspera de ‘Todos os Santos’. Neste
aspecto, registe-se a sábia declaração do bispo de Setúbal, na esteira do
pensamento expresso pelo Papa Francisco em 19 de Janeiro de 2017: “Lutero não
quis dividir a Igreja, mas purificá-la e renová-la Lutero não quis mudar a Fé,
mas explicitá-la”.
Para
lá deste suposto e propagandeado perfil de “herético excomungado por Roma”, os nossos dois historiadores traçaram, sucinta
mas eloquentemente, a personalidade polimórfica de Martinho Lutero: monge
exemplar e místico, teólogo, filósofo,
linguista (traduziu a Bíblia do velho latim para o vernáculo alemão) professor
eminente, poeta e músico compositor, profeta
e projectista de uma sociedade nova,
através da criação de escolas de ensino público gratuito (‘a criação de escolas
é um serviço a Deus’) igualdade de direitos para as mulheres e para as jovens
no acesso às escolas e universidades, contacto directo com a Escritura Sagrada
(na sua tradução em língua alemã). A
este plano de imbatível abrangência sócio-cultural e política, apanágio de um
visionário dos tempos futuros, juntou a plena assunção da dignidade do Homem, a
sua autonomia e a sua capacidade decisória: “A Consciência acima dos Tribunais
e a Palavra de Deus acima da Igreja visível”. Lapidar e memorável a sua resposta diante dos
julgadores do Sacro Império Romano-Germânico
na Dieta (tribunal) de Worms, em 1521: “Eu estou aqui”!
Impossível
conter nestas linhas a altitude e a honestidade intelectual do Grande
Reformador que mudou o rumo da Europa e,
após a sua morte, do universo cultural, religioso e político de que hoje somos herdeiros. Em Portugal,
Antero de Quental nas famosas Conferências
do Casino de 1871 em Lisboa fez uma análise consequente dos Decadência dos Povos Peninsulares,
próxima do ideário de Lutero, antecipando-se
ao economista alemão Max Weber
que em 1905 publicou A Ética Protestante
e o Espírito do Capitalismo.
Parabéns
aos organizadores. Presentes estiveram na I
Parte os bispos António Carrilho
e Teodoro Faria. Saí entusiasmado com a personalidade fascinante de Lutero.
Dois travos de tristeza, porém, e de revolta interior: Primeiro, como foi possível à Igreja subverter
sadicamente a grandeza de um Homem e acicatar o ódio dos cristãos contra Lutero
e os seus correligionários?... Segundo: fizeram-se ali apelos, quase juras de amor, unidade e conciliação entre cristãos católicos e cristãos
protestantes, evocando visitas dos bispos a igrejas luteranas, ortodoxas, sinagogas
e outros templos não católicos da Madeira. Perguntei então: Como é possível que os mesmos
bispos continuem voltando as costas a uma pobre paróquia católica que desde há 40
anos não visitam?...
Como
um outro Matin Luther (o King), desabafo
com acesa esperança: I have a dream…
o sonho da coerência e da unidade!
15.Mar.17
Martins Júnior
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