quarta-feira, 15 de março de 2017

GLORIOSO E LIVRE APÓS 500 ANOS DE SEPULTURA - Uma tarde no Funchal



Não é só a Cidade nem é só a Diocese que guardam um vasto património de cinco séculos. Há quem o tenha, também, esse património cinco vezes centenário -  e mais surpreendente e valoroso, precisamente por ter sido algemado e jogado como um demónio para o  inferno que o império vaticano  lhe cavou em vida. Tem por nome  Martinho Lutero, o génio pioneiro em terras germânicas,  que abriu as portas do pensamento e da liberdade,  a partir de Wittenberg,  para a Europa e para todo o mundo a haver.
Foi na tarde de ontem que no Auditório da Reitoria da UMa se procedeu à gloriosa exumação e se fez justiça àquele que afrontou a ditadura do  obscurantismo e da hipocrisia reinantes na perigosa passagem de nível da Idade Média para a claridade solar da Renascença, entendida esta nos seus múltiplos contornos. Duas metas diversas foram protagonizadas pelos intervenientes: uma estritamente histórico-crítica, da responsabilidade dos Prof’s Dr’s Nélson Viríssimo e Viriato Soromenho Marques; a outra, de tendência apologético-confessional, a cargo da Drª. Ilse Berardo,  Rev.ma Pastora  residente da Igreja Luterana do Funchal, co-promotora  do encontro,   e do Bispo José de Ornelas, ilustre madeirense ao serviço da Diocese de Setúbal.
Sem desprimor para cada um dos oradores, foram os Mestres em História  que, de uma forma límpida e transparente, sintetizaram o contexto da época e relevaram a estatura moral, intelectual, coerente e intrépida de Martinho Lutero. Com efeito, fomos descobrindo, passo-a-passo, que Lutero  não foi só o opositor frontal ao Papado ou o destruidor da Igreja, como esta no-lo pintou, ao longo dos séculos, representando Lutero, sempre de martelo na mão, afixando as suas famosas 95 teses no castelo de Wittenberg em 31 de Outubro de 1517, véspera de ‘Todos os Santos’.  Neste aspecto, registe-se a sábia declaração do bispo de Setúbal, na esteira do pensamento expresso pelo Papa Francisco em 19 de Janeiro de 2017: “Lutero não quis dividir a Igreja, mas purificá-la e renová-la Lutero não quis mudar a Fé, mas explicitá-la”.
Para lá deste suposto e propagandeado perfil de “herético excomungado por Roma”,  os nossos dois historiadores traçaram, sucinta mas eloquentemente, a personalidade polimórfica de Martinho Lutero: monge exemplar  e místico, teólogo, filósofo, linguista (traduziu a Bíblia do velho latim para o vernáculo alemão) professor eminente,  poeta e músico compositor, profeta e projectista de uma  sociedade nova, através da criação de escolas de ensino público gratuito (‘a criação de escolas é um serviço a Deus’) igualdade de direitos para as mulheres e para as jovens no acesso às escolas e universidades, contacto directo com a Escritura Sagrada (na sua tradução  em língua alemã). A este plano de imbatível abrangência sócio-cultural e política, apanágio de um visionário dos tempos futuros, juntou a plena assunção da dignidade do Homem, a sua autonomia e a sua capacidade decisória: “A Consciência acima dos Tribunais e a Palavra de Deus acima da Igreja visível”.  Lapidar e memorável a sua resposta diante dos julgadores do Sacro Império Romano-Germânico  na Dieta (tribunal) de Worms, em 1521: “Eu estou aqui”!
Impossível conter nestas linhas a altitude e a honestidade intelectual do Grande Reformador  que mudou o rumo da Europa e, após a sua morte, do universo cultural, religioso e político  de que hoje somos herdeiros. Em Portugal, Antero de Quental nas famosas Conferências do Casino de 1871 em Lisboa fez uma análise consequente dos Decadência dos Povos Peninsulares, próxima do ideário de Lutero,  antecipando-se  ao economista alemão  Max Weber que em 1905 publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Parabéns aos organizadores. Presentes estiveram na I  Parte  os bispos António Carrilho e Teodoro Faria. Saí entusiasmado com a personalidade fascinante de Lutero. Dois travos de tristeza, porém, e de revolta interior:  Primeiro, como foi possível à Igreja subverter sadicamente a grandeza de um Homem e acicatar o ódio dos cristãos contra Lutero e os seus correligionários?...  Segundo:  fizeram-se ali apelos, quase  juras de amor, unidade  e conciliação entre cristãos católicos e cristãos protestantes, evocando visitas dos bispos a igrejas luteranas, ortodoxas, sinagogas e outros templos não católicos da Madeira.  Perguntei então: Como é possível que os mesmos bispos continuem  voltando as costas  a uma pobre paróquia católica que desde há 40 anos não  visitam?...
Como um outro Matin Luther (o King),  desabafo com acesa esperança: I have a dream… o sonho da coerência e da unidade!

15.Mar.17

Martins Júnior     

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