Todos
os anos, na Madeira, a primavera vem do mar. Em boa hora, a editora ‘Nova
Delphi’ faz-nos mergulhar num vasto oceano de saberes e sentires, trazidos por
mareantes de todo o planeta, sábios, filósofos, romancistas, poetas, músicos,
enfim, uma robusta tripulação de descobridores do mundo das letras e das artes,
ancorados na ilha. São tesouros preciosos do conhecimento que aqui deixam ficar
para nós, ilhéus, que moramos longe dos grandes centros emissores do saber.
Neste ano, a capital insular respirou a atmosfera da criatividade humana, com a
mensagem ‘ao vivo’ e na primeira pessoa
de ilustres galardoados nacionais e internacionais, entre os quais, um Prémio
Pulitzer e um Prémio Nobel, este último traído pelos ventos cruzados do
aeroporto da Madeira. Aos madeirenses em geral e aos alunos do Secundário foi-lhes
oferecida, sem custos, mais uma oportunidade de ouro que, oxalá, tenhamos
apreciado e guardado para todo o ano, para toda a vida. Bem hajam os seus
promotores.
Em
meio de tanta constelação de criativos, descobri uma pérola na paisagem oceânica,
tal como os investigadores dos fundos marinhos em busca dos bivalves habitados
por finas peças de ourivesaria, ocultadas aos olhos da superfície. E afigurou-se-me tão luzidia essa pérola,
precisamente por ser pertença da maré que atravessamos todos os dias. Tão magra
de volume, mas tão plena de profundidade, que não resisto a expô-la a quem
tiver o gosto e a sensibilidade de tocá-la com as próprias mãos.
Refiro-me
a uma breve crónica de Sandra Nobre, cujo título – PÉS ALADOS - foi inspirado no pensamento da malograda pintora mexicana Frida Kahlo: “Pés, para que vos quero, se
tenho asas para voar”?!
De
nada serve transcrevê-lo aqui esse roteiro enorme de uma vida do nada, que vale
bem um poema, um filme, um monumento! Por ser tão escasso de folhas e tão
infinito de emoções, convido a que o leiam antes que seja atirado para o vão do
esquecimento. Ele toca os abismos da miséria humana e sobe até à estratosfera
do sublime. Não exagero. Porque é entre o abismo e o sublime que nos movimentamos
enquanto vivemos. Normalmente, os dois
extremos são expressos por ordem inversa: “Ascensão e Queda”, Grandeza e Miséria”
de um homem, de um país, de uma
civilização. Aqui, o sortilégio domina todo o enredo, numa progressão
ascensional que a ninguém deixará indiferente. Porque não se trata de um
romance, mas de uma vida concreta, colada às nossas. Não só a do Telmo
Ferreira, mas a de muitas crianças, “os meninos das caixinhas”, que o nosso
conterrâneo ‘Padre Edgar’ persistentemente acompanhou e a realizadora sueca
Solveig Nordlung, em 1993, transportou para o cinema sob o título Até Amanhã, Mário, tendo os seus autores
sofrido acintosas críticas dos governantes madeirenses. Eu bem me lembro.
Deixo
aqui, com quantas forças tenho, a maior e mais sentida homenagem à
jornalista/escritora Sandra Nobre, pela sua coragem e pela coerente sobriedade
que imprimiu a este percurso, a um tempo, doloroso e glorioso. No mesmo tom,
senão mais alto, saúdo o Telmo Ferreira por ter assumido de viva voz (escutei-o, emocionado) o drama e a glória da sua vida, hoje radiosa
e feliz. Congratulo-me com todos quantos, Henrique Amoedo à cabeça, ajudaram o
Telmo Ferreira a transformar os pés doridos em asas triunfantes. Os heróis
vivem connosco, nós é que não damos por eles.
Duas
notas finais:
A
literatura, o romance em especial, devia incarnar sem peias a trajectória das
problemáticas sociais, na linha dos nossos Raúl Brandão, Alves Redol, Soeiro
Pereira Gomes, Manuel da Fonseca. Nesta linha, apreciei a mensagem do jovem escritor
brasileiro Marcelino Freire, presente no evento.
Prosseguindo
o pensamento deste autor – “não só os passados Nobel têm lugar neste festival,
mas também os futuros prémios Nobel” – peço licença para apresentar aos
prestimosos líderes da ‘Nova Delphi’ a seguinte
sugestão: em novos festivais, incluam sempre um escritor madeirense, de
preferência residente, porque conteúdos não faltam, conscientes de que assim promoverão a cultura global e incentivarão os talentos locais.
Small is Beautiful.
Bem
hajam!
17.Mar.17
Martins Júnior
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