sexta-feira, 17 de março de 2017

NA MADEIRA, AQUI TÃO PERTO: PÉS DORIDOS, ASAS TRIUNFANTES


Todos os anos, na Madeira, a primavera vem do mar. Em boa hora, a editora ‘Nova Delphi’ faz-nos mergulhar num vasto oceano de saberes e sentires, trazidos por mareantes de todo o planeta, sábios, filósofos, romancistas, poetas, músicos, enfim, uma robusta tripulação de descobridores do mundo das letras e das artes, ancorados na ilha. São tesouros preciosos do conhecimento que aqui deixam ficar para nós, ilhéus, que moramos longe dos grandes centros emissores do saber. Neste ano, a capital insular respirou a atmosfera da criatividade humana, com a mensagem  ‘ao vivo’ e na primeira pessoa de ilustres galardoados nacionais e  internacionais, entre os quais, um Prémio Pulitzer e um Prémio Nobel, este último traído pelos ventos cruzados do aeroporto da Madeira. Aos madeirenses em geral e aos alunos do Secundário foi-lhes oferecida, sem custos, mais uma oportunidade de ouro que, oxalá, tenhamos apreciado e guardado para todo o ano, para toda a vida. Bem hajam os seus promotores.
Em meio de tanta constelação de criativos, descobri uma pérola na paisagem oceânica, tal como os investigadores dos fundos marinhos em busca dos bivalves habitados por finas peças de ourivesaria, ocultadas aos olhos da superfície.  E afigurou-se-me tão luzidia essa pérola, precisamente por ser pertença da maré que atravessamos todos os dias. Tão magra de volume, mas tão plena de profundidade, que não resisto a expô-la a quem tiver o gosto e a sensibilidade de tocá-la com as próprias mãos.
Refiro-me a uma breve crónica de Sandra Nobre, cujo título – PÉS ALADOS -  foi  inspirado  no pensamento da malograda pintora mexicana  Frida Kahlo: “Pés, para que vos quero, se tenho asas para voar”?!
De nada serve transcrevê-lo aqui esse roteiro enorme de uma vida do nada, que vale bem um poema, um filme, um monumento! Por ser tão escasso de folhas e tão infinito de emoções, convido a que o leiam antes que seja atirado para o vão do esquecimento. Ele toca os abismos da miséria humana e sobe até à estratosfera do sublime. Não exagero. Porque é entre o abismo e o sublime que nos movimentamos  enquanto vivemos. Normalmente, os dois extremos são expressos por ordem inversa: “Ascensão e Queda”, Grandeza e Miséria” de um  homem, de um país, de uma civilização. Aqui, o sortilégio domina todo o enredo, numa progressão ascensional que a ninguém deixará indiferente. Porque não se trata de um romance, mas de uma vida concreta, colada às nossas. Não só a do Telmo Ferreira, mas a de muitas crianças, “os meninos das caixinhas”, que o nosso conterrâneo ‘Padre Edgar’ persistentemente acompanhou e a realizadora sueca Solveig Nordlung,  em 1993,  transportou para o cinema sob o título Até Amanhã, Mário, tendo os seus autores sofrido acintosas críticas dos governantes madeirenses. Eu bem me lembro.
Deixo aqui, com quantas forças tenho, a maior e mais sentida homenagem à jornalista/escritora Sandra Nobre, pela sua coragem e pela coerente sobriedade que imprimiu a este percurso, a um tempo, doloroso e glorioso. No mesmo tom, senão mais alto, saúdo o Telmo Ferreira por ter assumido de viva voz  (escutei-o, emocionado)  o drama e a glória da sua vida, hoje radiosa e feliz. Congratulo-me com todos quantos, Henrique Amoedo à cabeça, ajudaram o Telmo Ferreira a transformar os pés doridos em asas triunfantes. Os heróis vivem connosco, nós é que não damos por eles.
Duas notas finais:
A literatura, o romance em especial, devia incarnar sem peias a trajectória das problemáticas sociais, na linha dos nossos Raúl Brandão, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca. Nesta linha, apreciei a mensagem do jovem escritor brasileiro Marcelino Freire, presente no evento.
Prosseguindo o pensamento deste autor – “não só os passados Nobel têm lugar neste festival, mas também os futuros prémios Nobel” – peço licença para apresentar aos prestimosos líderes da  ‘Nova Delphi’ a seguinte sugestão: em novos festivais, incluam sempre um escritor madeirense, de preferência residente, porque conteúdos não faltam, conscientes de que assim  promoverão a cultura global e   incentivarão os talentos locais.
Small is Beautiful.

Bem hajam!

17.Mar.17

Martins Júnior

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