Mas
que enorme confusão é esta, qual “salada russa” destemperada, que trago para a ceia de uma quarta-feira, chamada
“de cinzas”. Porque é destes ingredientes (e outros mais) que se compõe a
tradição “cristã e ocidental” em que fomos moldados. Milénios de estereótipos
ancestrais formataram gerações sem conta e das quais comodamente partilhamos,
como se de uma segunda natureza se tratasse.
Nas vinte e quatro horas de quarta-feira,
os sinos
tangendo quase a finados, gravaram aos ouvidos dos crentes a inexorável
sentença: Memento, homo, qui es pulvis et
in pulvere reverteris – “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás-de
tornar” - encenada com a deposição de
umas cinzas de palmitos na cabeça dos utentes e a que se pretende adicionar uma
espécie de mítico talismã carregado de um ímpeto divino para melhor entrarem no consciente o peso e a profundidade da pena
capital, sem apelo nem agravo. Da minha parte, desde há muitos anos deixei essa
cinzenta tradição, pela conclusão clara de tratar-se de um sinal, outrora desenhado no
cérebro do crente, mas que hoje apresenta-se-nos tão evidente e tangível que
basta ver o fumo esvoaçante da chaminé crematória para concluirmos que aquele
ou aquela a quem tanto amámos, a sua beleza, o seu talento, a sua força física,
tudo ficou guardado numa minúscula caixinha que trouxemos para casa e que um
dia será também o cinzeiro da nossa
frágil grandeza. Aos surdo-mudos falamos
por sinais, mas ao cidadão normal, os sinais são excedentários e, por isso, inúteis,
senão mesmo prejudiciais. Chega bem
ouvir a voz de Vieira, o mestre da língua e do pensamento: Hoje és pó erguido, amanhã serás pó caído.
Do
manual de instruções desta Quarta-feira consta também um receituário original,
a que se atribui uma carga devocional armadilhada de preceitos
ultra-terrestres, divinos: o jejum e a abstinência, sobretudo a carne e a sua
interdição temporária. Deduzo, porém, que não é preciso altear tanto a joeira
para trazer lá do trono sagrado aquilo que qualquer nutricionista/dietista nos
descreve sob os nossos olhos e na palma
da nossa mão, isto é, que uma alimentação equilibrada, promotora da saúde
estrutural do ser humano, decreta militantemente
a ingestão abusiva de carnes e gorduras
saturadas. Mesmo que renegues o cardápio quaresmal, não te inquietes por isso:
no consultório médico lá o terás, sem cinzas nem mistérios. Em tempos de
obscurantismo retardatário, Moisés pretendeu aplicar a famosa medida
terapêutica – não comerás carne de porco
– pelos suas nefastos efeitos na saúde pública, em climas quentes. Ele conhecia
bem a índole daquele povo ignorante e rebelde, que só tinha medo do
chicote do seu Deus justiceiro. Daí, a única estratégia para
salvaguardar a saúde colectiva e evitar a lepra contagiosa, recorreu a um
subterfúgio (hoje, manifestamente abusivo), o de sacralizar uma natural medida profiláctica, colocando-a no
altar de “mandamento divino”. Não estamos
na Judeia de há quatro ou cinco
milénios, para interiorizarmos inteligentemente que os abusos alimentares não são ofensa a Deus,
são antes suicidários atentados a nós próprios. Ademais, a ironia ou cinismo
dos auto-proclamados representantes de Deus ensinaram ao povo um truque para subornar
e fugir ao castigo sobrenatural, como hoje se foge ao fisco: se pagares uma
bula na igreja, já podes refastelar-te
de carne à vontade. Como foi possível chegar a esta barbaridade de considerar
Deus como um ser venal, aparentado aos
banqueiros, procuradores e governantes,
a contas na barra da justiça, por suborno?!
Onde quero chegar com todo este
arrazoado?
Muito longe – e muito perto! Longe,
para despirmos os crepes bafientos e rasparmos as camadas de tinta grossa com
que pintaram, caiaram, rebocaram a cantaria pura e bela do nosso intelecto,
incomodando Deus – para cómodo da nossa
preguiça mental - e fazendo-O legislador
implacável de normas que já estão inscritas dentro de nós, da nossa condição de
possuidores transitórios do mundo em que vivemos. Perto, quero chegar
muito perto e aspirar o perfume do espírito em tudo quanto existe na natureza.
Aspirar o espírito das coisas é respirar
Deus plasmado na atmosfera, no fruto, na água, na Terra que é o melhor consultório e a melhor farmácia
para a saúde universal. Assim entendeu
Teillard de Chardin. Assim nos aponta o Papa Francisco naquele poema-panegírico à ecologia,
intitulado “LAUDATO SI”. E assim nos ensina o Mestre, no texto de hoje: “Quando jejuares,
lava o teu rosto, perfuma a tua cabeça” (Mt.6,17).
subtendendo-se nas entrelinhas: sê
saudável, transborda de graça e alegria.
É
assim que vejo o Tempo de Quaresma… Quaresma é quando o homem quiser. É sempre!
Como o Natal.
01.Mar.17
Martins
Júnior
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