A
onda patriótica do 5 de Outubro na capital do país alongou-se pelo mar
atlântico e abraçou a baía iniciática da capital histórica da Madeira – Machico, Terra
de Tristão Vaz. Aqui se abriu o Pórtico das Descobertas do Além-Mar Português.
E é hoje, 9 de Outubro, o Dia Maior oficialmente designado para alcandorar o
nome, a bandeira, o Povo de Machico. Por isso, pus na minha agenda compor um hino
apoteótico àquele território onde o sol nasce primeiro e ao qual o nosso poeta-filósofo, Francisco
Álvares do Nóbrega, dedicou o soneto titulado “À Pátria do Autor”.
Dois
episódios, porém, alteraram o projecto patriótico que me tinha proposto. E
decidi descer à prosa dos dias e ao catálogo das efemérides. As judiciosas
observações, na imprensa diária, de José de Olim, um atento analista do seu
concelho, desmontaram, logo de manhã, o meu poema. E embarquei na sua ideia de autonomizar o Dia
do Concelho, dissociando-o das comemorações bicentenárias do “Senhor dos
Milagres”. O segundo episódio, tão determinante como o primeiro, aconteceu na
sessão solene, em que todos os oradores “obrigaram-se” a colar nos seus
discursos a dupla ‘constitucional e sacramental’, enfadonha também: “Hoje, 9 de Outubro, Machico celebra o Dia
do Concelho e o Dia do Senhor dos Milagres”.
A sugestão não é nova. Já
a tinha equacionado aquando das minhas responsabilidades autárquicas, lá vão quase trinta anos. Hoje, porém, algo fez eclodir dentro de mim a
imperatividade urgente da sua concretização. Chame-se-lhe adenda, emenda, correcção
ou adequação. Eu chamo-lhe respeito pela terra e fidelidade à história.
Desde
logo, porque esta comemoração falseia e destrói a idade e a identidade de
Machico. Com efeito, o 9 de outubro, em estrito cômputo da história, não tem
mais de 214 anos. Situa-se em 1803 o trágico acontecimento que deu origem à
(impropriamente) chamada “Festa” do Senhor dos Milagres. Mas o nosso Machico,
nobre e ancestral, tem certidão de nascimento desde 2 de Julho de 1419,
portanto há quase 600 anos. Bem andou a actual Junta de Freguesia de Machico em
instaurar o “2 de Julho” como o Dia da Cidade. Em abono desta tese e em
contradita ao 9 de Outubro, basta pensar em certos sítios de Machico, hoje
paróquias, caso paradigmático o da Ribeira Seca, que ostenta no seu frontispício
a data de 1692, ano em que o
secretário-capitão da Câmara Municipal de Machico, Francisco Dias Franco,
mandou construir, a expensas suas, a capela do Amparo naquela, então, zona serrana, completando agora a provecta
idade de 325 anos de história, muito anterior portanto aos 214, hoje
comemorados, na sede do município. Contra factos, não há argumentos.
Outro
aspecto, este de ordem psicossociológica, que tem muito a ver com a idiossincrasia
da população. O garbo, o brio atávico e a emblemática capacidade, optimista e
combativa, do Povo de Machico não se espelha numa comemoração trágica que, em
1803, engoliu pessoas, terras e bens, tal como sucedeu no Funchal, cujo balanço
conjunto contou com mais de mil vítimas mortais, de todas as idades. Pela mesma
lógica, o Dia da Cidade do Funchal seria, não o 21 de Agosto, mas igualmente o
9 de Outubro. E, adaptando a Lisboa o Dia Maior seria o 1 de Novembro, em que um
tremendo terramoto arrasou, em 1755, toda a cidade.
Esbatem-se
na penumbra do tempo as provas fundamentantes da opção tomada pelas entidades
oficiais relativamente ao Dia do nosso Concelho. Não será despicienda, talvez,
e admissível a hipótese de agregar num só feixe a memória histórica e a religiosidade
popular oriunda de um fenómeno casual centrado na recolha de uma imagem no alto
mar por uma galera (tinha de ser!) americana. A valer este argumento, o Funchal
teria o seu Dia no 1º de Maio, de São Tiago Menor, que ‘limpou’ a lepra que então
grassava na cidade. E o Dia de Portugal,
o 15 de Agosto, evocando o ‘milagre’ de Aljubarrota, em 1385, pela mão de Santa
Maria da Vitória. Ou então, o 13 de Maio, pelo maior acontecimento religioso
português, desde 1917.
Aqui
fica, pois, o meu contributo para a valorização cultural e, sobretudo, para a
verdade histórica da vetusta ’capitania’ de Machico. Compete aos historiadores (e
há-os, proficientes e persistentes, no nosso concelho) investigar e trazer à
luz do dia o marco identitário que exalte o brilho secular, sempre antigo e
sempre novo, e mobilize a militância civilizacional que vive no subconsciente
histórico das nossas gentes. Permitam-me sublinhar a saudável autonomização das
duas comemorações – a civil e a religiosa - evitando promiscuidades supérfluas
e até prejudiciais para as duas instituições em causa.
Isto
também é amor pátrio!
Como
é da praxe, termino: “À consideração superior”.
09.Out.17
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário