Dias há – e estes são os que ora
vivemos – que fazem o pleno total. No hiper-painel do tríduo, desde segunda até
hoje, quarta-feira, ofereceram-se aos nossos olhos e à nossa consideração
fenómenos, os mais díspares e até contraditórios, que dão para pano para mil
mangas e apetite para todos os paladares. Logo na ribalta, os trunfos dos
craques lusos contra os ‘cheques´ suíços, as surpresas do campeonato político
regional, os badalados escândalos
financeiros, os gloriosos 50 anos sobre a morte de Ernesto ‘Che’ Guevara, o
terramoto independentista da Catalunha, os 150 anos da abolição da pena de
morte em Portugal, evocados no auditório da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, com valiosíssimas prestações de índole médico-ético-jurídica que
nos impressionaram vivamente.
Nesta
densa paisagem humana, optei por um outro cenário, esse único e concêntrico,
onde tudo nasce e tudo acaba: a Vida, a sua génese, os saltos qualitativos, as estranhas
metamorfoses e, por fim, o seu epílogo. Tudo
quanto mexe, cresce e fenece – é dentro da ‘bola mágica’ da Vida que acontece.
Oh enigma da unidade e da diversidade do fenómeno existencial!... Tentar descobri-lo,
penetrá-lo nos seus estonteantes meandros e constelações é tarefa ingente, só
comparável à do mito de Sísifo (que inspirou a Camus um precioso ensaio
filosófico e a Miguel Torga um poema de inexcedível beleza) – a divindade grega, condenada a transportar até ao alto uma pesada pedra que, em lá chegando,
voltava a resvalar eternamente ao sopé da montanha.
Vêm
estas considerações a propósito de um livro – uma enciclopédia, direi – lançado
anteontem em Lisboa. É seu Autor o Prof. Dr. Miguel Oliveira da Silva,
catedrático de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa,
entre outras funções, primeiro presidente eleito do Conselho Nacional de Ética
para as Ciências da Vida (CNECV). A obra, apresentada por José Barata Moura, Anselmo
Borges e Bento Domingues, constitui uma corajosa incursão numa problemática
suscitada pelos tempos de hoje, como se regista em epígrafe. Tocar na Vida exige
mãos de veludo e punhos de gigante e em que o foco projector iluminante tem o
nome e a dimensão da Bioética. Perante um seleccionado elenco de médicos, juristas, teólogos, constitucionalistas
consagrados e um numeroso grupo de universitários, alunos seus, o Prof. Dr.
Miguel Oliveira abriu o imenso Livro da Vida com a coragem de quem não teme
encontrar a verdade ético-biológica, sem preconceitos nem dogmatismos,
aplicando rigorosamente o método cartesiano da dúvida em demanda da certeza
que, tal como o lendário Sísifo, retorna à dúvida metódica e nos obriga a
prosseguir viagem. No seu cerne, surgem a vertigem e as limitações das novas
tecnologias, as responsabilidades das famílias, das escolas e dos Estados, em
ordem ao fim último, “a dignidade das nossas vidas”. Foram duas horas de
escaldante concentração mas de íntima satisfação global que a todos nos mobilizaram, a partir da Fundação Medeiros de Almeida, Lisboa.
Impossível
traduzir aqui a amplitude das suas propostas, onde a par da humildade interior
do cientista avulta o ânimo transformador, positivamente revolucionário, próprio dos bandeirantes de um
mundo novo. A título exemplificativo, transcrevo:
“Os preceitos morais não perderam, por
certo, nem força nem autoridade, mas correm o risco de se subverterem perante
situações concretas inesperadas que os códigos tradicionais não podiam prever.
Impõe-se, portanto, a tarefa de libertar as normas fundamentais que são peremptórias
dos preceitos acessórios e secundários que acidentalmente se lhe juntaram em
épocas pretéritas, ao sabor de condições históricas particulares e transitórias…
A Ética biomédica não pode, pois, ser reducionista nem fundamentalista, muito
menos converter-se numa nova teologia da medicina com as suas velhas e novas
leis canónicas e dominantes”.
E a advertência final, eloquente,
persuasiva, exigente:
“Mas o maior mal é querer ser-se banal, é
não querer assumir o seu próprio destino na dialéctica sopesada entre o bem
individual e o bem comum na defesa dos mais fracos e vulneráveis, aceitar, continuar
a ser-se heterónomo, a passividade perante o poder ético, político,
profissional e deontológico que vem de fora”.
Como
sublinharam os apresentadores – um Livro sério, científico, obrigatório! Nós
agradecemos, Prof. Miguel!
11.Out.17
Martins Júnior
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