Vi
o meu país a arder. E partilhei convosco a visão de quem sente as chamas de
Pedrógão contagiando corpos e almas, tribunais e Escrituras, partidos e classes
sociais. Foi anteontem, quando subi ao observatório do SENSO&CONSENSO e de onde
avistei serenamente a paisagem
circundante. As interpretações ficam ao critério de quem lê. Todas plausíveis,
todas aceitáveis.
Hoje,
alargo o olhar e percorro mais de dois mil anos de história e constato que,
afinal, a sina existencial do ser humano é, talvez, viver entre as achas de uma
fogueira interminável, porque inextinguível. E com esta verificação retomo o
nexo lógico da reflexão do sábado, 21 de Outubro. Porque, hoje é Domingo.
O
ar que o Cristo de Nazaré foi obrigado a respirar, durante os três anos de vida
pública, estava infestado de chamas virulentas que as classes dominantes
reacendiam à Sua volta, sem tréguas, umas vezes ostensivamente, outras
armadilhadas sob as cinzas da hipocrisia e do oportunismo mal disfarçado. No
Domingo passado, vimos o ardil capcioso com que os donos do poder civil e
religioso pretendiam “caçar” o Mestre, a pretexto do pagamento de impostos aos
Césares de Roma. Hoje, a armadilha,
congeminada pelos donos do capital e do direito, os fariseus, trazia todo o
veneno de uma flecha em brasa, embrulhada numa pergunta, a mais dócil e aparentemente
inofensiva: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei”?
Só
se entenderá o alcance desta cilada se nos situarmos no contexto
sócio-ideológico da época. Aí, imperava o regime teocrático, cujo rigor
dominava as instituições e as mentalidades, sobretudo, no âmbito do culto. As
únicas linhas programáticas da Religião assentavam numa projecção vertical:
religioso era só aquele que olhava para o Alto e fazia do culto legalista,
extra-terrestre, o exclusivo passaporte para ser aceite na comunidade. Daí, as
mais desumanas prescrições, por vezes cruéis e contra-natura. Era o despotismo religioso à solta, o reino
do sufoco e da escravatura para o povo.
O
Cristo, pelo contrário, fixava o seu olhar menos para o Alto e mais para a
terra, para o povo abandonado, carente e amordaçado pelos donos da religião. “Tudo
o que fizerdes a um destes mais pequeninos é a mim mesmo que fazeis”. Abissal
esta mudança de registo e de acção! Era a Religião na sua essencial dimensão
horizontal. Estava, assim, lavrada a sentença
do Sinédrio e dos Juízes-Sumos Sacerdotes: “Esse homem é Belzebu, é um demónio
em pessoa”. É um herege, um ateu – diríamos hoje. “Portanto, é réu em tribunal,
tem de morrer”!
Este,
o ambiente, o ar calcinado que se respirava então. Mas faltava a confirmação
formal pela boca do próprio. Era preciso apanhá-lo em flagrante, publicamente.
Daí, o ferrete da pergunta. “Qual é o primeiro mandamento da Lei”?...
Novamente, o Mestre entre a espada e a parede! Não podia contradizer-se,
negando a substância da sua pedagogia, o serviço ao outro é um serviço a Deus.
Mas também não daria o flanco aos fariseus detractores, negando o culto ao Deus
Iahveh, sob pena de blasfemo e réu no supremo tribunal.
Então
veio a resposta. Ténue na voz, mas imponente, inapelável no conteúdo: “Sim, o
primeiro é esse que vós dizeis: ‘Amar a Deus’. Mas o segundo é idêntico (igual)
ao primeiro: Amar o Próximo”.
Permitam-me
destacar neste episódio, não tanto a tese inclusa na resposta (porque essa povoa
toda a mensagem) mas o seu contexto, isto é, o clima de perseguição, de
intriga, de maledicência, enfim, a satânica fogueira inquisitorial, em cujas
chamas os ditadores da religião e do
capital pretendiam afogar a pessoa e o ideário libertador do nosso Cristo.
Razão tinha Augusto Cury para escrever esse respeitável estudo, a que deu o apropriado
título: “O Homem Mais Inteligente da História”. É esta visão do Cristo
Horizontal, tocante, lado-a-lado connosco – a que Ele talvez prefira – em vez
do Messias Verticalizado, assumpto e extra-terrestre, objecto de preces e
benesses de circunstância.
Admitindo e respeitando outras e
diversas abordagens sobre o assunto, assento a minha perspectiva nesta
verificação prática, retomando o pensamento de Blaise Pascal: “Jesus estará em
agonia até ao fim dos tempos”. Pois bem: este Cristo em agonia não é o Cristo
das Alturas, invisível, sideral, porque a esse os novos Fariseus e Sumos
Sacerdotes não incomodem nem perseguem. Até ajoelham diante do seu altar. A
quem os dominadores do mundo atiram às
chamas, ferem e matam são os Cristos vivos, os que vivem a horizontalidade
intrínseca da sua mensagem, os “que têm fome e sede de justiça”, os que sofrem
mas não desistem, os que gemem mas cantam, os que morrem mas continuam
redivivos, ressuscitados. Como o Mestre. Como tantos, gente anónima, de ontem,
de hoje e de amanhã.
29.Out.17
Martins Júnior
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