Dias estes, os primeiros
de Outubro, para olhar a terra nossa – sítio, vila ou cidade – e amá-la,
limpando-lhe o pó do tempo ou as rugas da face e cantando-lhe poemas de amor
telúrico. A isto chamo o amor pátrio, o patriotismo total. Desde o 1º de Outubro
de 2017 (para uns, glorioso e, para outros, doloroso), até ao centenário 5 de
Outubro de 1910 (a primavera republicana), nenhum português deixará de viver,
em grande retrospectiva, a história que é nossa. Para Machico, em particular, a
noite de amanhã, 8 de Outubro, reveste-se de luz e prenuncia a data (bem ou mal) do Dia Maior
das Terras de Tristão Vaz. É o Dia do Concelho.
A
noite reveste-se de luz! Talvez para
esconjurar os fantasmas da tragédia que, em 8 de Outubro de 1803, devastou o aconchegado vale de Machico e
engoliu terras, pessoas e bens na voragem da tremenda aluvião.
É aqui que me detenho ,
absorto e vigilante. E daqui tento decifrar a magia dessa noite que, amanhã,
fará do centro da cidade o átrio das gentes de toda a ilha. Decifrando,
monologo e dialogo com quem, como eu,
também se debruça sobre o mar de luz que começa lá onde acaba o salso mar da
baía a que aportaram os marinheiros do
Senhor Infante.
Desde criança, sempre me impressionou
a pressurosa azáfama de gente que se
abeirava dos mercados das velas, quer o da sacristia, quer o dos vendedores
ambulantes em redor do templo, não obstante a ‘maldição’ que contra eles
vociferava o pároco, concorrente do mesmo ‘negócio’. E era ver o rodopio de
rudes aldeões e mulheres de xaile traçado, à moda antiga, ostentando logo pela
manhã, a caminho de casa, os ‘círios de altura’, as cabeças, braços, pernas,
barrigas, todas de cera, embrulhadas em toalhas de linho bordado, prontas para
o cortejo nocturno. Devo dizer que, na casa dos meus pais, não tenho memória de
alguma vez termos participado nesses rituais. Passados, porém, quase oitenta anos, é
idêntico o cenário, ainda que noutra veste.
Esqueçam esta morosa
introdução puramente descritiva para, só agora, dizer ao que venho. Tão
longínqua como a minha infância, tal é a irrespondível pergunta que continua a perseguir-me: “Que vem fazer
toda esta gente ao grande cortejo do Senhor dos Milagres?”. Da boca
dos milhares de candelários romeiros, ouvir-se-ia a mesmíssima justificação que
herdámos do sincretismo de todas as religiões, mesmo as pagãs: “Venho pagar uma promessa por uma graça que Deus me fez”.
Dispenso-me de dissecar
aqui os conteúdos da fé dos romeiros promitentes. Porque fés há muitas. Também
não perco tempo com a caixa registadora do negócio em causa. “Vai lá quem quer”.
Única e exclusivamente o que me preocupa e, creiam, profundamente me angustia
é a visão redutora do Cristo Histórico,
a fé minimalista, apoucada, que tal resposta condensa. Um Cristo, fazedor de
graças, de favores pontuais, discriminatório, exclusivista e narcisista, “Jesus
foi bom para mim”. E pensar que por cada
‘feliz milagrado’ há centenas, milhares, talvez milhões de preteridos,
abandonados, proscritos… e todos filhos do mesmo Deus! De que justiça estamos a
falar?... Não se faça do Cristo Crucificado um agente do euromilhões!!! Já em
Fátima o Papa Francisco advertiu os crentes de que não fizessem de Maria “uma santinha a quem se recorre para obter
favores a baixo preço”.
O nosso Líder e Pedagogo
é mais, muito mais que um eventual fornecedor de sortes e benesses. No imenso
cordão luminoso, onde é que encontraremos em plena luz o Cristo corajoso,
Mestre da Verdade Total, Psicólogo das multidões, Desafiador das estruturas
caducas com que os magnatas da Religião, exploradores da fé do povo inculto, queimavam
na cruz os construtores de uma sociedade justa, igualitária e pacífica?!
Levarão os candelários de uma noite o desejo de conhecer o Cristo, na sua
possível plenitude? Bem escreveu o jornalista e teólogo Juan Arias quando
titulou assim o seu livro: “Cristo, esse Grande Desconhecido”.
E foi esse o maior anseio
que Ele dirigiu aos Doze (e a toda a humanidade) no testamento da Oração do
Getsémani: “Pai, que eles Me conheçam e saibam que Tu Me enviaste”.
Respeitando a fé particular de cada peregrino
e de todos os participantes do interminável velório desta noite, faço dois
votos. O primeiro: que o nosso Cristo não lhes repita o que disse à multidão
dos felizes contemplados com a multiplicação dos pães: “Vós procurais-Me, não
pelos meus sinais, mas porque comestes do pão que vos dei e ficastes saciados” (Jo.6,
26). O segundo: Que estejam atentos à
pergunta feita ao apóstolo Filipe, nestes termos: “ Há tanto tempo que ando
convosco e ainda não Me conheces, Filipe” (Jo.14, 8-9).
Oxalá, o cortejo luminoso
da noite se abra na alvorada do conhecimento do nosso Cristo Total!
07.Out.17
Martins Júnior
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