Era
noite e fez-se manhã clara – “ai, a frescura das manhãs em que se chega”. O mar
alargou berço da baía, galgou a muralha,
alagou as avenidas e entrou vitorioso no
Teatro nobre da cidade. E ali, durante uma hora inteira, retumbou pela fala de “Pessoa”
aquela epopeia breve, a que Fernando chamou de “Ode Marítima”.
Era dele a fala, mas a voz, rediviva.
foi a de Pedro Lamares. Eloquente a
transmissão do pensamento heterónimo “Álvaro de Campos”, ora bonançosa e terna,
ora cava e longa como o Cabo das Tormentas, tocando as raias do paroxismo
exaltante, supra-lunar. A extrema
exiguidade de adereços – o intérprete, só, em palco sob um discreto feixe
luminoso - emprestava à cena o ambiente do laboratório náutico, onde se
dissecou toda a logística e toda a simbólica do “navio”, tal como os peritos do subconsciente profundo desfibram
e autonomizam cada um dos mil neurónios do psiquismo humano. Empolgante!
Façam
enxárcias das minhas velas/ Amarras dos meus músculos/ Arranquem-me a pele,
preguem-na às quilhas/ E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de
sentir/ Façam do meu coração uma flâmula de almirante/ Na hora de guerra dos
velhos navios… Ah, todo o cais é uma saudade de pedra.
Vale
a pena revisitar o Teatro e o Poema. Num tempo de duvidosa oferta da arte de
Tales, em que predominam as produções herói-cómicas, algumas delas de um humor
rasteiro, é de aplaudir e partilhar o emotivo e pesado labor de Pedro Lamares na
apresentação da “Ode Marítima”. É tal a versatilidade do seu talento, na dicção
e na interpretação, que nos cativa a todos e faz-nos descobrir dentro de nós
uma centelha de Fernando Pessoa. Ficou-me um búzio encostado à alma, vou escutando, balbuciando estes tímidos ecos, como se fossem a tradução, dentro de
mim, da monumental “Ode Marítima” de
Álvaro de Campos
Dentro de
nós uma ilha
Que logo damos
por ela
Dentro de
nós o mar
E dentro
dele o navio que somos
Mas raro ou
nunca tardamos encontrar
11.Out.18
Martins
Júnior
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