quinta-feira, 11 de outubro de 2018

DENTRO DE NÓS UMA “ODE MARITIMA”


                                                   

Era noite e fez-se manhã clara – “ai, a frescura das manhãs em que se chega”. O mar alargou  berço da baía, galgou a muralha, alagou as avenidas  e entrou vitorioso no Teatro nobre da cidade. E ali, durante uma hora inteira, retumbou pela fala de “Pessoa” aquela epopeia breve, a que Fernando chamou de “Ode Marítima”.
         Era dele a fala, mas a voz, rediviva. foi a  de Pedro Lamares. Eloquente a transmissão do pensamento heterónimo “Álvaro de Campos”, ora bonançosa e terna, ora cava e longa como o Cabo das Tormentas, tocando as raias do paroxismo exaltante, supra-lunar.  A extrema exiguidade de adereços – o intérprete, só, em palco sob um discreto feixe luminoso - emprestava à cena o ambiente do laboratório náutico, onde se dissecou toda a logística e toda a simbólica do “navio”,  tal como os peritos do subconsciente profundo desfibram e autonomizam cada um dos mil neurónios do psiquismo humano. Empolgante!
         Façam enxárcias das minhas velas/ Amarras dos meus músculos/ Arranquem-me a pele, preguem-na às quilhas/ E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir/ Façam do meu coração uma flâmula de almirante/ Na hora de guerra dos velhos navios… Ah, todo o cais é uma saudade de pedra.
         Vale a pena revisitar o Teatro e o Poema. Num tempo de duvidosa oferta da arte de Tales, em que predominam as produções herói-cómicas, algumas delas de um humor rasteiro, é de aplaudir e partilhar o emotivo e pesado labor de Pedro Lamares na apresentação da “Ode Marítima”. É tal a versatilidade do seu talento, na dicção e na interpretação, que nos cativa a todos e faz-nos descobrir dentro de nós uma centelha de Fernando Pessoa. Ficou-me um búzio encostado à alma,  vou escutando,  balbuciando estes tímidos  ecos, como se fossem a tradução, dentro de mim,  da monumental “Ode Marítima” de Álvaro de Campos

Dentro de nós uma ilha
Que logo damos por ela
Dentro de nós o mar
E dentro dele o navio que somos
Mas raro ou nunca tardamos encontrar

        11.Out.18
         Martins Júnior


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