Quem
me dera e quem nos dera ter lá estado nessa tarde sombria de outono com sabor a
manhã de primavera! Foi em Paris, Palais de Chaillot, dia 10 de Dezembro de
1948. Lá dentro, os representantes de 48 países confrontados com a hecatombe da
férrea ditadura nazi. Cá fora, a pequena
multidão - aqueles e aquelas que tinham sobrado ao Holocausto - aguardava a
proclamação universal da dignidade humana, vilipendiada e afogada no sangue da
guerra. E o alvoroço tomou conta de corpos e almas, das que lá estavam e das
que em todo Ocidente esperavam a grande nova: “Todos os homens nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos… sem distinção alguma, nomeadamente de raça, cor,
sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna,
nascimento ou outro qualquer estatuto”.
A
mensagem correu à velocidade da luz, porque de alvorada e luz eram as suas
asas, Está hoje traduzida em 512 línguas
e foi adoptada por 193 Estados.
Enquanto
escrevo, lá em Paris, no mesmo Palais Chaillot, ultimam-se os cenários para a
solene comemoração do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos”. Mas não será a mesma a emoção dos países (ou representantes) de
outrora. Nessa altura, a assinatura do histórico documento constituía um
imperativo irrecusável das nações vítimas da ferocidade bélica, era o pão para
a fome e a água para a sede das populações envolvidas. Aliás, já vinha de longe
o almejado gérmen da dignificação do
indivíduo face à todo-poderosa soberania do Estado, O sonho de João-Sem-Terra e
da sua “Magna Carta”, em 1215, foi circulando nos subterrâneos da
história, ganhou impulso com a declaração de independência dos EUA em 1776, da revolução francesa de 1789, mais
tarde retomado pela acção do presidente Roosevelt e do francês René Cassin, até
culminar no texto de 1948.
Não
tem sido fácil o percurso dessa primavera europeia. No iter negocial da Declaração Universal enviesaram-se interesses e
entraves, quase todos diplomaticamente dissimulados de formulações ideológicas:
uns, porque os direitos económicos e sociais deviam sobrepor-se aos direitos
individuais, portanto a dicotomia interesse do indivíduo ou direito da
colectividade.; outros, como (paradoxalmente!) a Igreja Católica e o Islão
opunham o argumento da subalternização do divino ao humano, que tornava
inaceitável o primado do homem sobre Deus. Só em 1965, a Igreja (Vaticano II)
admitiu a liberdade religiosa. Outra corrente, esta mais recente, como na Polónia
e na Hungria, entende que a prevalência dos direitos do cidadão põe em causa a
soberania nacional, enfim, o nacionalismo exacerbado em marcha, como nos EUA, America first. Quanto aos africanos e
asiáticos, recusam os termos da Declaração porque, alegam, tal significaria a
ocidentalização dos seus países. Pretendem, nesta área, autonomia de
procedimentos legais e subsequentes padrões comportamentais.
Por
tudo isto, quão diferente será amanhã a comemoração dos 70 anos, em Paris!
Razão tinha Samuel Moyn quando, já em 2012, considerava a Declaração de 1948
uma “utopia” para os tempos que correm. Mais
frontal, embora carregada de um deprimente pessimismo, foi Angela
Merkel, ao afirmar no discurso comemorativo do fim da primeira guerra mundial
(1918-2018): “Imaginemos que nós, Nações Unidas, teríamos de assinar uma Declaração
idêntica, Seríamos nós capazes de o fazer?... Temo que não”.
Para
onde caminhamos nós?...
Ainda
há uma luz ao fim do túnel. Deixo-a aqui, por corresponder à verdade factual e
também para ânimo de quem luta: quando o mundo começa a perder os inalienáveis
direitos humanos, têm de ser as basses, os pequenos, direi mesmo, os párias da
sociedade que deverão de entrar na liça para reconquistá-los. Dos grandes e das cúpulas nada se espera. Por
isso, louvo daqui todos quantos, na sua esfera de acção, lutam, manifestam-se,
dão a cara e o talento em prol da ressurreição da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
09.Dez.18
Martins Júnior
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