À
semelhança dos surfistas que navegam no tubo da onda e aí alcançam o corredor
do pódio, assim nós, os caminheiros da vida, encontramos no oceano dos dias o
vislumbre da luz ao fundo de um túnel. E amanhã é esse dia, amanhã é essa luz. Na
sua monótona simbologia sacro-patriótica, o dia 8 de Dezembro vejo-o maior e
mais glorioso. A distribuição de papéis pelas personagens envolventes na grande
alegoria bíblica do Génesis desagua no palco da história humana e pode sintetizar-se
neste breve enunciado: a miséria e a grandeza da Mulher.
Convenhamos
que o título atribuído ao 8 de Dezembro é demasiado pobre, simplista, redutor:
Dia feriado Nacional porque dedicado a Nossa Senhora da Conceição, Rainha de
Portugal, desde D. João IV, o Restaurador. E então, eis-nos perante o grande teatro do
mundo (como diria o dramaturgo Calderon de la Barca) inebriados por um estranho
pano de fundo, onde contracenam uma serpente enleada num troco de jardim (era o
tempo em que os animais falavam), uma mulher e um homem esculturais na sua
nudez original, namorando os três uma viçosa árvore prenhe de maçãs iguais ao
doce brilho das manhãs. Era o paraíso terreal. Depois, a Eva deixou-se enrolar na conversa da serpente,
passou a mão macia pelo sensual fruto da macieira, comeu e, companheira
solidária do seu homem, passou metade da maçã (ou talvez mais) ao esbelto e
espadaúdo Adão. Depois, foi o ajuste de contas: o dono do pomar, escondido
entre a ramagem, aparece furtivo, despe-os, a ele e a ela (ou então os dois
descobriram que, afinal, estavam nus) e, sempre raivoso, o senhorio da horta
condena a serpente e, com uma espada flamejante, expulsa do paradisíaco jardim, o primeiro
homem e a primeira mulher, modelados que foram pelo próprio Supremo Escultor do Universo, mas
agora caídos em desgraça.
A
novela, concebida por Moisés para explicar as raízes do Bem e do Mal inatos nos
indivíduos e nas sociedades, tem tudo de aliciante, comovente e mistificador
para prender a atenção e a emoção do espectador. Mas não se fica por aqui. O
senhorio do pomar amaldiçoa a Mulher, coloca-a numa espécie de arena, frente à
pérfida cobra e obriga-as a uma luta sem tréguas. Há sangue, viperinas contorções
durante toda a refrega, mas o calcanhar da Mulher acaba por esmagar a cabeça do
réptil tentador.
Onde
vejo eu a miséria e a grandeza do estatuto de Mulher?
Nas
entrelinhas – retomando o código surfista, no tubo da onda – da própria
narrativa bíblica. Descontando o naif e
a ingenuidade da trama moisaica, aí mesmo se condensa a dupla condição
feminina, ao longo de todas as pátrias e civilizações. De um lado, a Mulher-Ré no
processo antropológico: a culpada, a desobediente, a instigadora, a traidora ao
Criador, a embusteira (“culpada foi a serpente”, responde Eva ao juiz-senhorio),
enfim a Mulher, causa primeira e única responsável pela desgraça da humanidade.
Mas, do outro lado, a Mulher-Coragem, a resistente, a que não foge à luta, a
que dá a cara e entrega-se sem limites até cantar vitória, uma vitória embebida
em sangue e lágrimas, sim, mas vitória incontestada!
Na
hermenêutica cristã e litúrgica, a Mulher primitiva, a pecaminosa, a autora do
crime de lesa-humanidade está consignada à Eva do Génesis. A outra, a Mulher
fiel ao seu mandato, a resistente e vitoriosa está personificada naquela jovem
nazarena, Maria, a Mãe do Messias Libertador, a impoluta que, desde o primeiro
instante da concepção, estava isenta de todo o defeito e, por isso, lhe foi
dedicado o 8 de Dezembro, o da Conceição de Maria.
Quero,
porém, navegar no mar alto, aproveitar a onda do dia, estender o meu olhar por todo o imenso cenário
da história humana e detectar no real quotidiano a dupla condição feminina: as mulheres
que se deixaram naufragar sob os comandos machistas, as mulheres incendiárias
capazes de derrubar tronos e subverter impérios, as Agripina, as desnaturadas Mary
Cotton, Lalurie. Mas quero vê-las também entronizadas, sublimadas,
as Mulheres nimbadas pela auréola do prestígio e pelo suave perfume da
feminilidade, as combativas, as construtoras silenciosas da história, as mães
doadoras da própria vida, as educadoras, elas, as verdadeiras e genesíacas
matrizes do futuro! Ajoelho-me perante as Joana d’Arc, as Curie, as Madre
Teresa, as Catarina Eufémia. E, por todas, diante daquela que me deu a vida que
tenho e deu toda a sua vida pelos seus e pelos outros!
Sálvè
o novo Dia da Mulher, no 8 de Dezembro de 2018 !!!
7.Dez.18
Martins
Júnior
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