“Era uma vez, lá na Judeia, um
rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças”.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças”.
Era
uma vez… Foi uma vez… Hoje, porém, é a vez. Não tem sido nada fácil fechar os
olhos para não ver ou tapar os ouvidos para não escutar… Neste fim de ano,
bafejado pelo sopro intimista da candura do Natal, esperava tudo menos este
travo a decepção, a angústia e, no limite, a revolta. É que o cinismo veste de
tal forma o verniz epidérmico do Natal que chega a tornar-se o mais vexatório
testemunho anti-Natal. O texto de Miguel Torga pertence ao reino do “Era uma
vez”… Mas outro conto e outra factualidade aí estão a demonstrar a
monstruosidade de outros tempos.
Na
chamada “Casa Branca”, o “rei” - mau, feio, hediondo de forma e fundo - mandou
erguer um grande presépio, com aqueles
gigantones bíblicos, do tamanho dos bofes amarelos do monarca. O Menino, esse
era do mais precioso marfim, bracinhos abertos, angélico sorriso. O infante
recém-nascido soube que o seu ‘dono’ era ruim, assassino de velhos e devorador
de crianças. Então, todas as noites gritava aos quatro cantos do palácio, como
que a dizer: ”Tirem-me daqui, tirem-me daqui”! … Quanto mais gritava, mais o
amarravam à gruta dourada. E mostravam-no garbosamente às visitas ilustres. Mas
um dia o “rei” saiu para a guerra. E logo o Menino e sua Mãe aproveitaram a
ausência do ditador e foram juntar-se à`
multidão de esfomeados sem abrigo que tentava ansiosamente entrar nas terras do
reino para poder sobreviver. Mais tarde,aos oito anos de idade, o Menino morreu,
vítima de subnutrição e maus tratos.
Noutro
território distante e num outro reino avaro, o “rei” – feio, astuto, medonho de
formas .e fundo – também mandou montar um presépio gigante, de fino recorte
ortodoxo, nos jardins do palácio. Todas as noites juntava a corte e, em
uníssono, todos cantarolavam melodias
tais que se ouviam pelas redondezas. Uma aura de devoção quase celestial fazia
a fama dos jardins imperiais. Mas o que ninguém conhecia era o instinto
visceral do “czar”. Até que um dia, para melhor disfarçar o vírus assassino que
lhe corroía o corpo, escondeu a bomba letal por baixo do berço do Menino. E, para
impor-se ao mundo, convocou magna assembleia. Num ímpeto de orgulho satânico,
mandou aos generais que accionassem o poderoso engenho – o último grito dos
arsenais bélicos de todo o mundo. Depois,
como Nero na antiga Roma, sentou-se
extasiado com a trajectória do instrumento fatal que causou centenas, milhares
de vítimas mortais em regiões distantes. Quanto ao Menino, estilhaçou-se pelos
ares, sem o mínimo pesar do devoto imperador. Em seu lugar, mandou colocar um
outro exemplar e até ordenou aos monges ancestrais que se cantasse um solene Te-Deum
de Acção de Graças pelo portentoso êxito que augurava o genocídio de populações
inteiras, a destruição fria, sádica do Menino de Belém.
Que
mais provas esperamos nós para constatar o cinismo e a hediondez dos donos
deste mundo?... Ah, se o pobre Menino pudesse falar!
No
breve esboço dos dois contos trazidos ao Presépio de Belém pode ler-se o velho
axioma: “A realidade ultrapassa a ficção”. Com efeito, o desplante e a
desfaçatez com que os Herodes de hoje se apresentam, pomposa e despudoradamente,
denunciam o embuste do Natal de Cristo e convocam a consciência colectiva contra
os destruidores institucionais de todos
os Natais.
Quando
passará esta nuvem negra de pessimismo, este presságio amargo de uma alegria
que tanto tarda?... Só quando o Povo, verdadeiro dono da soberania do mundo,
abrir os olhos e for ele mesmo a construir o autêntico Presépio de Belém!
27.Dez.18
Martins Júnior
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