quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

DEVOTOS DESTRUIDORES DE TODOS OS PRESÉPIOS – DOIS BREVES CONTOS DE NATAL

                              

“Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
 Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças”

Era uma vez… Foi uma vez… Hoje, porém, é a vez. Não tem sido nada fácil fechar os olhos para não ver ou tapar os ouvidos para não escutar… Neste fim de ano, bafejado pelo sopro intimista da candura do Natal, esperava tudo menos este travo a decepção, a angústia e, no limite, a revolta. É que o cinismo veste de tal forma  o verniz epidérmico do Natal  que chega a tornar-se o mais vexatório testemunho anti-Natal. O texto de Miguel Torga pertence ao reino do “Era uma vez”… Mas outro conto e outra factualidade aí estão a demonstrar a monstruosidade de outros tempos.
Na chamada “Casa Branca”, o “rei” - mau, feio, hediondo de forma e fundo - mandou erguer um grande  presépio, com aqueles gigantones bíblicos, do tamanho dos bofes amarelos do monarca. O Menino, esse era do mais precioso marfim, bracinhos abertos, angélico sorriso. O infante recém-nascido soube que o seu ‘dono’ era ruim, assassino de velhos e devorador de crianças. Então, todas as noites gritava aos quatro cantos do palácio, como que a dizer: ”Tirem-me daqui, tirem-me daqui”! … Quanto mais gritava, mais o amarravam à gruta dourada. E mostravam-no garbosamente às visitas ilustres. Mas um dia o “rei” saiu para a guerra. E logo o Menino e sua Mãe aproveitaram a ausência do ditador e foram juntar-se  à` multidão de esfomeados sem abrigo que tentava ansiosamente entrar nas terras do reino para poder sobreviver. Mais tarde,aos oito anos de idade, o Menino morreu, vítima de subnutrição e maus tratos.
Noutro território distante e num outro reino avaro, o “rei” – feio, astuto, medonho de formas .e fundo – também mandou montar um presépio gigante, de fino recorte ortodoxo, nos jardins do palácio. Todas as noites juntava a corte e, em uníssono, todos  cantarolavam melodias tais que se ouviam pelas redondezas. Uma aura de devoção quase celestial fazia a fama dos jardins imperiais. Mas o que ninguém conhecia era o instinto visceral do “czar”. Até que um dia, para melhor disfarçar o vírus assassino que lhe corroía o corpo, escondeu a bomba letal por baixo do berço do Menino. E, para impor-se ao mundo, convocou magna assembleia. Num ímpeto de orgulho satânico, mandou aos generais que accionassem o poderoso engenho – o último grito dos arsenais bélicos de todo o mundo.  Depois,  como Nero na antiga Roma, sentou-se extasiado com a trajectória do instrumento fatal que causou centenas, milhares de vítimas mortais em regiões distantes. Quanto ao Menino, estilhaçou-se pelos ares, sem o mínimo pesar do devoto imperador. Em seu lugar, mandou colocar um outro exemplar e até ordenou aos monges ancestrais que se cantasse um solene  Te-Deum de Acção de Graças pelo portentoso êxito que augurava o genocídio de populações inteiras, a destruição fria, sádica do Menino de Belém.
Que mais provas esperamos nós para constatar o cinismo e a hediondez dos donos deste mundo?... Ah, se o pobre Menino pudesse falar!
No breve esboço dos dois contos trazidos ao Presépio de Belém pode ler-se o velho axioma: “A realidade ultrapassa a ficção”. Com efeito, o desplante e a desfaçatez com que os Herodes de hoje se apresentam, pomposa e despudoradamente, denunciam o embuste do Natal de Cristo e convocam a consciência colectiva contra os  destruidores institucionais de todos os Natais.
Quando passará esta nuvem negra de pessimismo, este presságio amargo de uma alegria que tanto tarda?... Só quando o Povo, verdadeiro dono da soberania do mundo, abrir os olhos e for ele mesmo a construir o autêntico Presépio de Belém!

27.Dez.18
Martins Júnior                                                                                

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