quarta-feira, 8 de março de 2023

FRAGMENTO APÓCRIFO DO LIVRO DO GÉNESIS PARA O DIA DAS MULHERES

 

                                       


            À hora em que o escriba invisível toma a pena de um esbelto ganso para traçar o episódio maior da Criação, já a noite caíu no silêncio angélico do divino  Éden .

O Demiurgo Taumaturgo ALAIHAVEH passeia-se sob um luar de mel silvestre, feliz por ter dado ao homem a estância mais bela do Universo saído das suas mãos. Encontra o formoso Adão recostado ao tronco de um sicómoro, em sono profundo, entrecortado por monossílabos delirantes, quase imperceptíveis: “Pa…reci…da…co…mi..go…Pa…reci…da…”. O Supremo Demiurgo afastou-se e entendeu a tristeza que todos os dias o possante Adão mal disfarçava: em todo o concerto idílico do paraíso terreal não achava quem lhe falasse, quem o escutasse, quem amasse e fosse amado. Era a libido genética que lhe subia dos pés ao cérebro e não achava eco nos pássaros multicolores, nos jardins suspensos, nos portentosos elefantes. Por mais de uma vez ousara pedir ao Criador: “Dá-me uma companheira parecida comigo”.

ALAIHAVEH decidiu: “Adão tem razão. Far-lhe-ei a vontade. Será tão semelhante quanto ele, quase igual, que até vou tirá-la do seu próprio corpo”.

Era a noite sétima do terceiro mês lunar. A diva mão demiúrgica teleguiou os passos de Adão, levou-o ao longo da olorosa alameda das espécies tropicais, sem sequer olhar para a “Árvore Proibida”, e deu-lhe a comer a polpa vermelha, de elevado índice capitoso e teor narcótico, de um raro cajueiro escondido na periferia do babilónico jardim. E ali mesmo, sob anestesia perfeita, estendeu-se imobilizado o protótipo da Humanidade.

Na madrugada do oitavo dia do mês – a que os futuros humanos chamariam Março de Marte – Adão sentiu a falta de uma costela no flanco esquerdo, olhou ALAIHAVEH, que logo lhe apontou para a obra-prima da Criação: a Mulher.  Prima inter Pares futuri. “Parecida, quase igual a mim, mais bela e esplendorosa” – soltou a voz adâmica aos pés do Demiurgo, uma voz tão retumbante que convocou todo o reino animal do paraíso, desde as aves de plumas voadoras até aos répteis e remansosos dinossauros, todos ajoelhados diante da Mulher e do seu poderoso Taumaturgo, patrono dos cirurgiões e esteticistas vindouros.

“EVA” será seu nominativo – sentenciou-lhe o Criador - por ser a Mãe Universal de todos os humanos a haver e a multiplicar-se neste planeta que vos dei ”. Mas Adão, assaltado pelo primeiro ciúme de perder o ceptro real, Primus inter Pares, interpôs-se, perdeu a inocência original e logo impôs-se: “Não, Supremo Ser, tal não será, jamais. Se nasceu da costela, não passará acima da chinela”! O espanto arrebatou as vísceras dos animais em redor, mais penosas as belas fêmeas atingidas pelo bastão condenatório do pérfido Adão.

ALAIHAVEH entristeceu-se, empalideceu de vergonha, voltou o rosto para os altos penhascos, para as planícies e para os fundos abismos, ainda por descobrir, na terra e no mar, e bradou aos quatro ventos: “Morreu aqui o Éden que sonhei para os mortais. Hoje abriu.se a selva humana, a primeira pedra da guerra interminável dos sexos e dos géneros. E antes que outros venham proclamar, sou Eu, ALAIHAVEH, Deus Único e Criador, sou Eu – e voltou-se para EVA – que vos aviso e previno: “MULHERES DE TODO O MUNDO, UNI-VOS”!

De passo pesado e semblante carregado de arrependido pela obra criada, subiu à mais inacessível montanha quase a tocar as estrelas e vaticinou:

“Tempos virão em que Tu, Mulher, cumprirás a sina maldita a que o homem te condena: Serás sinal de contradição, salvação para uns, ruína para outros. Darás à luz entre dores. E entre dores e silêncios comerás o pão que Lúcifer servir-te-á, seduzir-te-á, devorar-te-á. Tentarás, como a serpente, morder o calcanhar de quem te persegue e passarás de perseguida a perseguidora. Vejo-te traidora e assassina, Medeia desgrenhada e feia, vejo-te Agripina, Pandora, Vitória rainha sem entranhas”.

ALAIHAVEH, exausto, sufocou a voz trémula que lhe caía dos lábios crestados pelo desgosto. Mas clareou o olhar turvo, viu o sol pespontando a fímbria nocturna das cordilheiras além, e arrancou do peito o Cântico Final da sua obra:

“ Tu vencerás! Vejo-te Penélope, graciosa e firme, esperando contra toda a esperança pelo seu Ulisses. Vejo-te Maria de Nazaré, sensível e estóica como ninguém. Vejo-te Joana d’Arc, jovem e líder, aquela que, como Fénix renascida, das cinzas da fogueira voou para as excelsas aras do Templo. Vejo-te Teresa de Calcutá, malsinada pelos hierarcas de outras sinagogas, por encher de pão as magras mãos vazias. E vejo Malala e Mahisa, chegam até mim os abafados gemidos dessas meninas envenenadas aqui bem perto, no futuro Irão – sangue pisado das mártires derrotadas, mas sementes da grande bandeira da Vitória da Mulher”.

Mais não disse. Uma nuvem escondeu-o, levando-o entre as galáxias celestes. Mas, como se um estrondoso trovão estremecesse as raízes de todo o jardim tropical, irrompeu a trombeta do Juízo Final, a voz primeira de ALAIHAVEH, dirigida a EVA condenada, não pelo Criador, mas pelo homem criado:

“MULHERES DE TODO O MUNDO, UNI-VOS” !!!

  

  7-8. Mar. 2023: Dia das Mulheres

Martins Júnior

 

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