À
hora em que o escriba invisível toma a pena de um esbelto ganso para traçar o
episódio maior da Criação, já a noite caíu no silêncio angélico do divino Éden .
O Demiurgo Taumaturgo
ALAIHAVEH passeia-se sob um luar de mel silvestre, feliz por ter dado ao homem
a estância mais bela do Universo saído das suas mãos. Encontra o formoso Adão
recostado ao tronco de um sicómoro, em sono profundo, entrecortado por
monossílabos delirantes, quase imperceptíveis:
“Pa…reci…da…co…mi..go…Pa…reci…da…”. O Supremo Demiurgo afastou-se e entendeu a
tristeza que todos os dias o possante Adão mal disfarçava: em todo o concerto
idílico do paraíso terreal não achava quem lhe falasse, quem o escutasse, quem
amasse e fosse amado. Era a libido genética que lhe subia dos pés ao cérebro e
não achava eco nos pássaros multicolores, nos jardins suspensos, nos
portentosos elefantes. Por mais de uma vez ousara pedir ao Criador: “Dá-me uma
companheira parecida comigo”.
ALAIHAVEH decidiu: “Adão
tem razão. Far-lhe-ei a vontade. Será tão semelhante quanto ele, quase igual,
que até vou tirá-la do seu próprio corpo”.
Era a noite sétima do
terceiro mês lunar. A diva mão demiúrgica teleguiou os passos de Adão, levou-o
ao longo da olorosa alameda das espécies tropicais, sem sequer olhar para a
“Árvore Proibida”, e deu-lhe a comer a polpa vermelha, de elevado índice
capitoso e teor narcótico, de um raro cajueiro escondido na periferia do
babilónico jardim. E ali mesmo, sob anestesia perfeita, estendeu-se imobilizado
o protótipo da Humanidade.
Na madrugada do oitavo
dia do mês – a que os futuros humanos chamariam Março de Marte – Adão sentiu a
falta de uma costela no flanco esquerdo, olhou ALAIHAVEH, que logo lhe apontou
para a obra-prima da Criação: a Mulher. Prima
inter Pares futuri. “Parecida, quase igual a mim, mais bela e esplendorosa”
– soltou a voz adâmica aos pés do Demiurgo, uma voz tão retumbante que convocou
todo o reino animal do paraíso, desde as aves de plumas voadoras até aos
répteis e remansosos dinossauros, todos ajoelhados diante da Mulher e do seu
poderoso Taumaturgo, patrono dos cirurgiões e esteticistas vindouros.
“EVA” será seu nominativo
– sentenciou-lhe o Criador - por ser a Mãe Universal de todos os humanos a
haver e a multiplicar-se neste planeta que vos dei ”. Mas Adão, assaltado pelo
primeiro ciúme de perder o ceptro real, Primus inter Pares, interpôs-se,
perdeu a inocência original e logo impôs-se: “Não, Supremo Ser, tal não será,
jamais. Se nasceu da costela, não passará acima da chinela”! O espanto
arrebatou as vísceras dos animais em redor, mais penosas as belas fêmeas
atingidas pelo bastão condenatório do pérfido Adão.
ALAIHAVEH entristeceu-se,
empalideceu de vergonha, voltou o rosto para os altos penhascos, para as
planícies e para os fundos abismos, ainda por descobrir, na terra e no mar, e
bradou aos quatro ventos: “Morreu aqui o Éden que sonhei para os mortais. Hoje
abriu.se a selva humana, a primeira pedra da guerra interminável dos sexos e
dos géneros. E antes que outros venham proclamar, sou Eu, ALAIHAVEH, Deus Único
e Criador, sou Eu – e voltou-se para EVA – que vos aviso e previno: “MULHERES
DE TODO O MUNDO, UNI-VOS”!
De passo pesado e
semblante carregado de arrependido pela obra criada, subiu à mais inacessível
montanha quase a tocar as estrelas e vaticinou:
“Tempos virão em que Tu,
Mulher, cumprirás a sina maldita a que o homem te condena: Serás sinal de
contradição, salvação para uns, ruína para outros. Darás à luz entre dores. E
entre dores e silêncios comerás o pão que Lúcifer servir-te-á, seduzir-te-á, devorar-te-á.
Tentarás, como a serpente, morder o calcanhar de quem te persegue e passarás de
perseguida a perseguidora. Vejo-te traidora e assassina, Medeia desgrenhada e
feia, vejo-te Agripina, Pandora, Vitória rainha sem entranhas”.
ALAIHAVEH, exausto, sufocou
a voz trémula que lhe caía dos lábios crestados pelo desgosto. Mas clareou o
olhar turvo, viu o sol pespontando a fímbria nocturna das cordilheiras além, e
arrancou do peito o Cântico Final da sua obra:
“ Tu vencerás! Vejo-te
Penélope, graciosa e firme, esperando contra toda a esperança pelo seu Ulisses.
Vejo-te Maria de Nazaré, sensível e estóica como ninguém. Vejo-te Joana d’Arc,
jovem e líder, aquela que, como Fénix renascida, das cinzas da fogueira voou
para as excelsas aras do Templo. Vejo-te Teresa de Calcutá, malsinada pelos
hierarcas de outras sinagogas, por encher de pão as magras mãos vazias. E vejo
Malala e Mahisa, chegam até mim os abafados gemidos dessas meninas envenenadas
aqui bem perto, no futuro Irão – sangue pisado das mártires derrotadas, mas
sementes da grande bandeira da Vitória da Mulher”.
Mais não disse. Uma nuvem
escondeu-o, levando-o entre as galáxias celestes. Mas, como se um estrondoso
trovão estremecesse as raízes de todo o jardim tropical, irrompeu a trombeta do
Juízo Final, a voz primeira de ALAIHAVEH, dirigida a EVA condenada, não pelo
Criador, mas pelo homem criado:
“MULHERES DE TODO O
MUNDO, UNI-VOS” !!!
7-8. Mar. 2023: Dia das Mulheres
Martins Júnior
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