sexta-feira, 3 de março de 2023

“SOLTEM-ME”

                                                                                     


Porque não é curial nem de longe se me ajeita  deixar os “casos” pelas pontas, volto hoje a um apontamento lateral que produzi num dos blogs e entrevistas anteriores e que deverá ter suscitado alguns reparos, julgo eu, de liturgistas e tradicionalistas. A propósito dos crimes de pedofilia na Igreja, anotei alguns pormenores visuais que podem configurar-se como uma outra exploração cénica da criança: o acolitado infanto-juvenil no altar.

            Faz parte das técnicas publicitárias ( chamam-lhes markting) recorrer, não raras vezes, à criança-objecto como estratagema fácil para anunciar e vender tal ou qual produto, para prestigiar uma organização e, daí, comover o grande público. A este propósito, um dos mais destacados estudiosos italianos da psique, Vittorino Andreoli, denuncia frontalmente: “Atrás da sobre-exposição das crianças na televisão não está de forma alguma um verdadeiro interesse por elas, mas uma exploração sagaz da sua imagem e da ternura que sabem suscitar para objectivos que nada têm a ver com a infância, antes vislumbrando nela um negócio particularmente rentável”. O autor vai mais longe quando titula estas observações num registo deveras acusatório: “A Criança Lava Mais Branco”. ( Do Lado Das Crianças”, pag.148).

            São de todos os gostos e de inesgotável criatividade imagética os ‘tiros’ que nos elegem como alvos  privilegiados os ecrãs caseiros, mas um, muito habilmente, capta a nossa atenção e, em muita gente, a simpatia: é quando entram no rectângulo de futebol as grandes equipas e lá vêm as crianças-anãs trazidas pela mão dos gigantes lutadores, elas como  cabides autómatos de uma farda que lhes enfiaram no ‘balneário’. Respeitando opinião contrária, considero uma sub-reptícia (sagaz) exploração das crianças, uma espécie de mini-robots, em palco inapropriado, muito pior num recinto onde o linguajar ‘vernáculo´não conhece censura.

            Subjacente a este figurino está o ultrapassado conceito do homúnculos – a  criança vista com um adulto em miniatura. Sempre foi a tendência dos regimes autocráticos, açambarcadores da personalidade individual e, portanto, cerceadores da liberdade, do crescimento saudável, autónomo. Basta lembrarmo-nos da velha ‘Mocidade Portuguesa’ do Estado Novo, com as crianças das escolas, os ‘lusitos’, fardadinhos a preceito, desfilando nas paradas oficiais. Ridicule, mais charmant – é o caso. O mesmo acontece com outros agrupamentos, públicos e privados, ainda hoje, talhadas as crianças com a alfaiataria imposta da organização. Enfim, sempre a massificação da sociedade, a partir da mais tenra idade.

            Suponho ter esclarecido a minha interpretação, nada abonatória do acolitado infantil. Feitas as devidas adaptações, parecem-me artificiais e também abusivas da subjectividade de uma criança aquelas ‘alvas’ moldadas sob os rigorosos figurinos eclesiásticos, como mini-diáconos em cenas milimetricamente premeditadas num grande palco transformado em altar. A criança tem o seu lugar na Igreja, mas (segundo me parece) não ali, em ambiente puramente teatral e desadequado à sua dimensão. Preferencialmente ao lado dos pais, da família, dos colegas.

Deixem as crianças livres de protocolos formais. Lá virá o tempo de fazerem opções. No reino da botânica, como na vida, não se  devem transplantar as flores mimosas senão quando chegar a estação própria. Até para evitar-se a degradação do jardim  e, na vida, insatisfação e revolta.

Respeitando quem pensa diferente,  termino com a mensagem de uma obra esclarecedora dedicada a este mesmo tema,  superiormente expressa num título-desabafo de uma criança: “SOLTEM-ME”!

 

            03.Mar.23

Martins Júnior

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