Guardo na memória mais
longínqua um professor que, para escândalo meu na altura, fez aos alunos esta
abstrusa revelação: “ a cultura de um
povo mede-se pela confecção dos molhos que serve à mesa”. E ficámos
boquiabertos, senão mesmo desiludidos, perante uma tão prosaica tirada de um
mestre poeta e homem de literatura. Levou muito tempo a perceber que a pedra de
toque ou, por outras palavras, a quinta essência de uma
sociedade reflecte-se nos usos e
costumes que, por repetidos e banalizados, não nos apercebemos da sua real dimensão .
Estão neste caso as
festas com que o calendário marca o ritmo e a face descoberta, porque
descontraída, de cada Povo, muito particularmente nestes fins-de-semana
espalhados por vilas e aldeias em honra de Santos e Santas.
Distorcendo um velho
adágio, apetece-me confidenciar seja a quem for: “Diz-me a que festa vais e eu
dir-te-ei quem és”. Olhemos em redor: há as festas delirantes das modernas
drogarias, vulgo dicto, estádios de
futebol. Há os festivais de verão, os “Alive”, os “Paredes de Coura”, os da
Zambujeira, onde os jovens despem os protocolos e encharcam-se em cerveja e
“shorts” e disso ficam de alma cheia. Há as festas dos Santos Populares em que se serve de tudo à mesa menos o legado histórico que nos deixaram. Há
também as festas de promessas, muitas promessas, círios, braços, pernas,
cabeças e quase todos os compêndios de anatomia, esquecendo-se os romeiros que
tratam a Senhora-Mãe como a pior madrasta, banqueira gananciosa, que só nos faz
uma dádiva se lhe apresentarem o cheque, a meu ver, sacrílego, que levam nas
mãos, untadas de pingos de estearina..
Há também o ribombar dos morteiros
rasgando a paz do firmamento onde está o Invisível Protagonista da cena
devocionária..
Mas o Zé-povo gosta. É
por isso que eu concluo que as festas espelham a mentalidade de um Povo, o seu
gosto estético, a sua idiossincrasia, aparentemente imperceptível, mas no fundo reveladora da sua global sensibilidade. E
aqui é que vi a lógica do meu professor de literatura com que iniciei esta
mensagem. Na realidade, as festas são
como que os molhos, mais doces ou mais picantes, mais energéticos ou mais
dormentes, da doméstica mesa das
sociedades. Não é por acaso que na velha Atenas, os Jogos Olímpicos eram a
consagração dos valores atléticos, éticos
e estéticos aos deuses do Olimpo;
e em Roma, a pedagogia anestésica do Império entretinha o povo com os famosos panem et circenses, comida e diversões
do circo, excessos inebriantes, a começar e a acabar nas orgias imperiais. E ---
que contrates ! --- vi eu no norte de África e até, por gentileza dos nativos,
participei nos rituais batuques, em que
os tambores da floresta chamavam ao culto os negros das sanzalas, reunidos em
profunda envolvência com a sua noção do sagrado.
Escrevo estas linhas
porque respiro nestes dias a atmosfera antecipada que viveremos neste fim de
semana, com a realização das Festas da Ribeira Seca, mais precisamente aquela
que dá pelo nome antigo de Festa do Senhor. Nela também se reflecte a alegria
destas gentes num módulo que tem tanto de tradicional como de inovador.
Inovador, em primeira mão, na dispensa do foguetório grotesco de outras eras, bélico
e estranho símbolo para celebrar a paz oriunda
do campanário do templo. Continuamos a tradição litúrgica da vigília vespertina
e a celebração eucarística solenizada no
domingo, mas pusemos no sótão das
velharias as précieuses ridicules de “pagar”(!)
promessas, porque recusamo-nos a fazer
do Senhor ou da Senhora feirantes de
arraial.
Cá fora, no palco aberto,
desfila toda a comunidade, representada por crianças, adolescentes, jovens e
adultos --- nalguns casos, pais e filhos --- exprimindo , em versos seus
originais e música minha, o ritmo baloiçante das alegrias, dos anseios, das carências e
protestos, tudo numa simbiose, perfeita na ideia, mas desculpável na ruralidade
das danças e cantares. Mais que os
batumes dos altos decibéis dos conjuntos, os espectadores de dentro e de fora permanecem impecavelmente atentos enquanto a
arte intergeracional se desdobra no palco. Neste ano, não faltará a evocação da
Escola Nova, fruto da luta do Povo em 1976,
mas agora ameaçada por
governantes economicistas, de olhos vendados para o desenvolvimento
integral desta população.
Enfim, uma festa do Povo,
pelo Povo e para o Povo --- delicioso molho psico.biológico no banquete nupcial
de uma igreja que faz juntar os seus
filhos, como “rebentos de oliveira” em
redor da mesa comum de cada dia!
Termino com uma das
canções alusivas ao dia, da
responsabilidade cénica do grupo de jovens:
“Não há quem detenha
não há quem destrua
O sonho gigante desta mocidade
A nossa romagem quando sai à rua
Traz este pregão de amor e liberdade”
Bem-vindos à Festa de
Sábado e Domingo!
23.JUL
Martins Júnior
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