Hoje, 19 de Julho, serei
tão parco em palavras quanto extenso na profunda interioridade desta efeméride,
que terá passado indiferente à maioria de quem apenas se impressiona pelo
imediato, pelo pitoresco, pelo descartável.
Acode-me ao pensamento a conclusão
de que, idêntico ao movimento rotativo do planeta que habitamos, assim se
apresenta a trajectória cíclica da História, com os seus pontos de encontro e
desencontro, de coincidências e discrepâncias, de apogeus e contrastantes eclipses. A roda do tempo traz
no seu enorme mostrador factos e personagens que, separados por séculos ou
milénios, reescrevem a mesma saga, como se um estranho fenómeno de reincarnação
se tratasse.
É o caso de 19 de Julho.
Duas figuras coincidem nos ideais, conquanto diversas no circunstancialismo que
as caracteriza.
Falo de Vicente de Paulo, que Roma canonizou e tem
culto sacralizado nas aras dos templos. E falo de Aristides de Sousa Mendes,
sacrificado na tulha da aliança fascista Hitler-Salazar.
Trezentos anos os separam. O primeiro, nascido em
França, no ano de 1581. O segundo, em Viseu, 1885. A ambos coube a nobre, mas
dolorosa, missão de alavancar a
dignidade humana conduzindo-a ao trono que lhe é devido: o reconhecimento do
seu direito à liberdade, à igualdade de oportunidades, o que, no seu reverso,
significa a imolação cruenta ou incruenta da vida do libertador. Distantes no
tempo, mas próximos do campo de batalha ---
região de Dax, Bordéus --- são hoje recordados ex aequo, embora oriundos de classes
sociais diferentes, o primeiro nascido no berço pobre da ruralidade, o segundo,
no palácio da aristocracia monárquica.
Vicente de Paulo, a custo, tentou subir os socalcos de uma sociedade injusta,
sendo até vendido como escravo,
sucessivamente, a um pescador, depois a um professor de Química e finalmente a
um poderoso agente financeiro, de religião muçulmana. Aristides de Sousa Mendes
ascendeu, nos braços da fortuna, ao corpo diplomático português. Mas a ambos os
esperava o mesmo “patíbulo”, o de pugnar
pelos mesmos ideais, Vicente arrancou às galés os escravos, levantou da valeta
centenas de crianças e jovens abandonados, deixou raízes solidárias que ainda
hoje perduram. Aristides, cônsul em Bordéus, afrontou o tenebroso regime
nazi-salazarista, quando na noite de 16 de Junho de 1940, decidiu arriscar a
vida e assinou nos dias seguintes passaportes de fuga a cerca de 30.000 condenados aos fornos
crematórios. É-lhe atribuída a decisão, coincidente com a de Pedro e João no sinédrio
de Jerusalém : “Se há que desobedecer,
prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus”— assim lhe
ditavam as suas convicções e a sua educação de infância.
Não vou demorar-me nos
dados biográficos de cada um dos homenageados a quem é dedicado todos os anos o 19 de Julho. É
sobejamente conhecido o epílogo de um e de outro: Vicente viu os seus esforços
compensados pela sociedade do seu tempo,. Aristides conheceu a despromoção do
cargo, o ostracismo sócio-político do regime da ditadura, o abandono de todos.
Apenas em 1966, um país estrangeiro, após o Relatório
Yad Vaschem (“Memórias do Holocausto”) dedicou-lhe o preito de gratidão,
plantando em Jerusalém vinte árvores em memória daquele que cognominaram de Justo entre as Nações. Em Portugal, só
após o 25 de Abril é que lhe foi concedida a título póstumo (morrera em 1954) a
Medalha de Oficial da Ordem da Liberdade, em 1986, pelo então Presidente da República, Dr. Mário Soares.
Parecendo, num primeiro
olhar, que estas são coisas do passado, desengane-se quem assim pensa. Para
mim, é de eloquente coincidência e flagrante actualidade. E fica-me esta
palavra de ordem, vibrante e madrugadora como o clarim que anuncia o novo dia
ou o Dia Novo: “Tu não estás só. Na placa giratória deste minúsculo planeta,
estão sempre a passar irmãos gémeos, sósias de ti mesmo, que desde tempos
imemoriais viveram o teu sonho. Considera-te uma florescência viva dos troncos
milenares que continuam a girar à tua volta”!
Tal como Vicente de Paulo
e Aristides de Sousa Mendes neste entrelaçado
abraço de 19 de Julho.
19.Jul.2015
Martins Júnior
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