Precisaria
eu de três ou quatro “dias ímpares” para interpretar cabalmente o mais cáustico
e imprevisto episódio deste périplo do Papa Francisco à “sua” América Latina,
mas vou tentar sintetizá-lo neste 13 de Julho. Aconteceu na Bolívia, quando o presidente Evo
Morales presenteou o argentino com aquele insólito, inaudito Crucificado num martelo
suportado pela elíptica foice, ícon do Partido Comunista. Provocatório para a
grande tribo de jornalistas e comentadores, mas muito mais “escandaloso” quando
se soube que essa era a reprodução fiel do
crucifixo usado pelo missionário jesuíta, Luís Espinal, encontrado morto em
1980 numa montanha distante, logo a seguir ao assassinato de Óscar Romero,
arcebispo de El Salvador. A ambas as vítimas dos cartéis organizados tinha
Francisco proclamado o seu heroísmo evangélico em prol dos camponeses e
mineiros cruelmente explorados.
Dispenso-me
de catalogar a “dádiva” de Evo Morales. Detenho-me apenas nos dois explosivos significantes
da efígie: Um padre jesuíta católico e um símbolo da bandeira marxista apertada
ao peito em oração. Tremenda contradição, clamam furiosos os fanáticos da
ortodoxia dogmática. Confesso que não me causou nenhum estremeção, pois recordo
que em 1972, em Volta Redonda, Rio de Janeiro, o bispo Duarte Calheiros
contou-me que um dos quatro processos movidos pelo governo da ditadura federal
teve como matéria de acusação o facto de, numa Semana Santa, ter mandado pintar
no altar a figura de Cristo Crucificado.
Com esta particularidade: a face do Cristo era o rosto de Che Guevara.
Casos
paradigmáticos, no mesmo território sul-americano. E em África. E na Ásia. E em
Portugal. Quantos mártires algemados e torturados, julgados e exilados sob as
garras do mais primário anticomunismo, por terem abraçado os ideais da esquerda!
Os
puritanos hipócritas atiram a primeira até à última pedra: que traidores esses
falsos apóstolos do Evangelho, que medonha aberração, que diabólico efeito da
sua vocação! Esse, sem dúvida, o efeito. E as causas? Ninguém lhe investiga as causas. É nesta incógnita
que reside o outro, o verdadeiro polo do bastão acusador.
Para
ajudar a perceber a resposta, socorro-me de uma das afirmações produzidas em
Itália por Francisco Papa, há cerca de dois anos: “Deixámos os pobres aos
comunistas”. Por outras palavras: entregámos a defesa dos pobres ao Partido Comunista. Aqui
está, pelo testemunho supremo, a causa que empurrou muitos cristãos, muitos
sacerdotes, muitos mártires para os braços de ideologias aparentemente
desviantes do espírito evangélico. Perante uma Igreja Romana, faustosa, corrupta,
perante uma Igreja diocesana, seja ela qual for, de braço dado com o poder injusto
e totalitário, como não revoltar-se para encontrar o “arco de uma nova ponte”
que salve os indefesos, que lhes dê oportunidade de ganhar o pão para a boca e a
cultura para a sua digna emancipação? O mesmo se há-de dizer das Igrejas nacionalistas
russa e chinesa, serventuárias incondicionais do totalitarismo comunista:
quantos sacerdotes e bispos, perseguidos
e proscritos por se recusarem ao jugo do sacro imperialismo sino-soviético!
Poderíamos
percorrer muitos outros registos da História antiga e moderna e perguntar: Como
apareceu o Protestantismo e seus derivados, senão porque o Papa de Roma excomungou,
em vez de escutar a argumentação lógica e teológica de Lutero sobre o sacrílego
negócio das Indulgências?! Os legítimos protestos
de há mais de 500 anos perpetuam-se até hoje nesta absurda proliferação de
igrejas divorciadas.
Por
que se separaram de Roma, em 1054, os milhões de cristãos de Constatinopla, os ortodoxos, senão porque se recusaram a
admitir o dogma da infalibilidade pontifícia?! Aí, as excomunhões Romanas foram
“agraciadas” com idênticas excomunhões por parte do Patriarca do Oriente,
Miguel Cerulário. E até aos nossos dias, nunca mais foi sanada a separação.
Por
que foi expulso de Portugal o bispo do Porto António Ferreira Gomes, com o
abjecto consentimento do cardeal Cerejeira, senão por ter-se batido contra a
opressão dos camponeses do norte do país sob o peso da ditadura salazarista?!
E
aqui tão perto, como é possível suportar uma Igreja amorfa, “bos mutus” (boi
mudo) ao serviço do governo que lhe dá ordens para marginalizar há mais de
quarenta anos uma comunidade de cristãos que vivem serenamente a sua fé?! Por
essas e outras razões é que, no Funchal, foi implantado o maior templo de uma
preconceituosa crença religiosa, precisamente a seis metros da Quinta do Paço
Episcopal. E o insensível inquilino do Paço nem dá por isso!
Não
há efeito sem causa nem causa sem efeito. São os dois bicos daquele bastão que, para uns, é vergasta
inquisitorial e, para outros, fonte de denúncia e justa rebeldia. Os erros de
hoje pagam-se amanhã. E quem os sofre são os incontáveis inocentes herdeiros.
Não
foi, pois, por um acaso sensitivo que Francisco Papa, primeiro com
espanto e depois com um sorriso concordante, olhou o crucifixo do irmão jesuíta,
defensor dos mineiros, Luís Espinal, que
lhe ofereceu Evo Morales.
É
caso para lembrar a canção de Vinicius
de Morais “Você que olha e não vê”, complementando-a
com a velha máxima: “Quem tem ouvidos de
entende--- que entenda”!
13.Jul.2015
Martins Júnior
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