“VOLTO JÁ”!
Previsto
estava para hoje o segundo parágrafo do
título “Populismo e Papulismo”. No entanto, a lei da vida que, no fundo, também
é lei da morte, obriga-me a dedicar o dia ímpar de hoje a uma Personalidade
Ímpar de Portugal e, na sua plena
interpretação, do mundo e da História.
Participei
no seu funeral, um digno preito de homenagem pública, cuja percurso geográfico sintetizou
toda a sua vida: o trabalho e o espírito profético, simbolizados no seu “Colégio Moderno” (onde decorreu o
velório) e no seu pequeno oratório --- a igreja do Campo Grande, em Lisboa.
Ali estavam o cardeal, o núncio
apostólico (embaixador do Vaticano em Portugal) bispos, teólogos, sacerdotes.
Ali se sentaram e ajoelharam, por formalístico protocolo, penso eu, as altas
figuras da nação. Mas se ali não estivessem, uns e outros, pouca falta fariam à
alma-mater daquela despedida. Porque tudo foi programado para a modéstia da
decoração, para a simplicidade mais pura, imanente e transcendente, a começar
pela escolha do templo, também humilde e envolvente: o local onde todos os
domingos partilhava o pão com a comunidade do Campo Grande. Foi posta de parte a habitual sumptuosidade das basílicas. Nem
sequer foi autorizada a recolha de imagens televisivas ou fotográficas da
cerimónia. Depois, ali tudo se passou como se de uma despedida familiar se
tratasse, em que foram intervenientes
principais os filhos, os netos e os alunos do Colégio. Foi emocionante ver e
ouvir os adeuses sentidos, traduzidos em verso e carta, à sua mãe, avó e
mestra. Ali, ao vivo, bem poderia
repetir-se o testemunho dos primitivos
cristãos: “Vede como eles se amavam”.
Não vou alongar-me no panegírico à Drª Maria Barroso Soares. Tudo belo quanto se disse dentro e fora do
templo! Relevo, pessoalmente, dois aspectos: um, do cineasta João Botelho, na
imprensa de hoje, em que lhe associou a intrépida coragem político-social da Passionária e a grandeza humanitária de Teresa de Calcutá. O
outro, recolho-o das páginas do Êxodo, onde se lê que Moisés, no meio da treva
circundante, “via o invisível”. Ao conhecer-se a trajectória do jovem casal “Maria
e Mário”, ela, actriz sublime e exímia
docente, proibida, pelo regime
salazarista, de exercer a profissão. Ele, na prisão do Aljube, pela mesma
razão-sem razão. Apesar disso, casaram por procuração e foi ela própria à
cadeia trocar as alianças. Outro golpe cruel, despedir-se, ela e os filhos, do
jovem Mário que seguia deportado para as Áfricas. Mas nunca desistiu. Repetidas
e mais destrutivas ameaças, mais perseguições e prisões. Mas nada lhe destruía nem apagava a chama ardente da
esperança que trazia no peito: o “dia
novo, pleno e inteiro”, a alvorada do
seu povo, o 25 de Abril de 1974. Ela,
mesmo no horizonte mais sombrio, “via o
invisível” diadema da Vitória. O seu eloquente testamento para nós viajantes,
ainda, e construtores deste país!
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Mas este funeral teve, para mim, uma
outra revelação, quando o ilustre pároco da igreja do Campo Grande, Monsenhor
Pe. Feitor Pinto, me diz logo à entrada: “Ó amigo Pe. Martins, queres concelebrar connosco?...
Vai já para a sala de paramentações”. Lá esperavam, para a mesma função, o
núncio apostólico, o cardeal Manuel Clemente, bispos, entre os quais, o
anterior bispo das Forças Armadas, Januário Torgal Ferreira, teólogos, Bento
Domingues, Victor Melícias, os nossos conterrâneos Jardim Gonçalves e Tolentino
Mendonça e muitos outros que cumprimentei pela primeira vez.
“Estou a gostar de ver-te aqui connosco”,
segredou-me um deles quando se iniciou o cortejo de entrada. Considerei e ainda
considero este convívio fraterno como mais uma prova do testemunho vivo de
inclusão, que foi a vida da Drª Maria
Barroso Soares. Tão diferente do regime de exclusão que por cá ainda impera…
Como escreveu Fernando Pessoa, “Morrer é
só deixar de ser visto”. Por isso, ela ainda está connosco para nos ensinar a “ver
o invisível”! Mesmo “na noite mais triste/Em tempo de servidão”. Como ela!
Por isso, , A minha e nossa gratidão
deixei-as a seus pés, entre estrelícias e orquídeas da Madeira.
9.Jul.2015
Martins Júnior
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