À
mesa do último encontro ‘senso-consensual’, sugeri um percurso aéreo sobre a
paisagem cultural da ilha, onde estrelas cadentes brilhavam nos pontos cardeais
deste pequeno território. Hoje, vou deambulando pelo rectângulo claro-escuro da
calçada entre o Teatro Municipal e o Largo da Sé, transformado agora em palco multicolor de todas as artes e de
todos os gostos. É a Feira do Livro do Funchal, uma multímoda ‘wikipédia’ de
saberes e lazeres, ali à beira-baixa da cidade e à maré-alta de todos as
apetências. Folheando o extenso guião da Feira, dificilmente poderia
conceber-se uma simbiose tão perfeita –
una e múltipla – envolvendo gerações, territórios, géneros literários, artes
plásticas, cinemateca, ludoteca, biblioteca, enfim, uma enciclopédia do mundo
no terreiro da nossa casa.
De
entre todas as variantes do programa, é de assinalar a preocupação de trazer à
rua a linguagem da cidade e da ilha pela voz de autores e artistas madeirenses.
No princípio, no meio e no fim desse roteiro ilhéu, uma nota se impõe: não ter
medo de fazer soar a memória do povo na conquista do seu espaço histórico, da
sua identidade interventiva e lutadora, nada e criada em diversos extratos sociais,
a começar pela actividade braçal, consignada no volume “O Arrais” do jovem
Alves dos Santos. A reimpressão da obra de António Loja –“A Luta do Poder
contra a Maçonaria” – veio trazer ao de cima e em público o impulso
revolucionário de um punhado de madeirenses, de diversas classes e profissões,
muitos clérigos inclusive, contra o absolutismo da Inquisição reinante no
Portugal do século XVIII.
Mais
impressiva, porém, foi a aventura da historiadora Raquel Varela que, em parceria
com a investigadora Luísa Barbosa Pereira, aguçou-nos o desejo de conhecer por
dentro a transição mais decisiva ocorrida no último quartel do século XX – “História do
Povo da Madeira no 25 de Abril”. Aliás, trata-se de focalizar na Madeira o
mesmo olhar com que viu e escreveu a “História do Povo Português no 25 de Abril”.
O trabalho de Raquel Varela vale por
si próprio, porque enraizado na autenticidade de testemunhas oculares, a voz de quem entrou,
sofreu e venceu as barreiras de um neofascismo emergente que os governos civil, militar
e eclesiástico porfiavam implantar no
pós-25 de Abril. A Autora não se limitou ao ‘diz-se, diz-se’ da imprensa ou do audiovisual
de então, manietados ou acomodados aos
governantes. Desceu ao terreno, ouviu ‘in loco’ contar, pelos próprios, os
avanços e recuos da Revolução dos Cravos na Madeira, os operários da construção
civil, os camponeses, os pescadores, as bordadeiras, todos os que, sabendo dos
acontecimentos de Lisboa, juntaram a carga
opressiva que traziam aos ombros desde
gerações seculares e irmanaram-se aos
heróicos fautores da mudança em Portugal. Machico ocupa um merecido lugar de
referência, porque aqui foi o povo genuíno que esteve na centralidade da alvorada
libertadora.
Mas
o mérito da elucidativa apresentação de Raquel Varela não se ficou por aí.
Enriqueceu-se com o debate público, em plena avenida, onde os ouvintes falaram,
chamaram à colação factos e nomes, até agora mumificados no congelador de
complexos acumulados de 43 anos de ‘democracia musculada’, um eufemismo para
encobrir a mais despudorada ditadura pós-25 de Abril na Madeira. Por isso,
afirmo e sustento que um dos valores trazidos por Raquel Varela foi esse mesmo:
quebrar o mito e o medo de conhecer a Madeira de quatro décadas, traída pelos
herdeiros do 24 de Abril. É gloriosa a história do Povo da Madeira no 25 de
Abril! Reergamo-la, corajosamente, para que não façam aos vindouros, o que soberanos
ilhéus sem escrúpulo fizeram à nossa geração.
Felizmente
que vão surgindo estudos históricos de rigor científico, como a já conhecida
obra do Dr. Bernardo Martins, lançada em Machico nas comemorações do 43º
aniversário do 25 de Abril. Mas muito, muito falta ainda por dizer. É verdade que
a História não pode ver-se nem analisar-se cabalmente, na hora da refrega, o
que, para nosso mal, já aconteceu com alguns escritos subsidiados pelos
detentores do poder e do capital locais.
A
caminho do cinquentenário, é chegada a estação de encontrar as fontes e as
raízes do passado recente – e enquanto é tempo útil – para que não perdurem os
silêncios cúmplices, as reportagens deturpadas, as campanhas maquiavelicamente
orquestradas por escribas colaboracionistas que, por meias-verdades, esconderam a inteira verdade dos factos.
Por
isto e por tudo o mais, valeu e continua a valer a Feira do Livro do Funchal.
29.Mai.17
Martins Júnior
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