Cento
e vinte e oito anos passaram sobre a ponte oceânica que, desde 1889, continua a
unir cidades e continentes. Por todo o mundo ecoaram hoje as vozes de Chicago.
Também aqui em Portugal. Vozes carregadas de espinhos e dores, mas tornadas
leves e soltas pelo esforço de gerações e gerações de homens e mulheres em
defesa da dignidade do trabalho face à supremacia do capital. Daqui de longe
levanto a bandeira rubra do sangue, do suor e das lágrimas que os filhos dos
trabalhadores empunharam e continuam a segurar num mundo adverso em
que as pessoas são reduzidas a máquinas escravas, descartáveis, de fabricar o
metal sonante que sobredoira as mansões dos ‘donos disto tudo’. Homens e
mulheres, jovens e anciãos de mãos calosas, rosto enrugado e gasto, mas de olhar
desperto como o abrir da manhã, merecem hoje e sempre o pódio dos vencedores –
heróis anónimos do trabalho braçal.
No
mesmo degrau dos construtores da justiça global, irmanam-se num só abraço os
titulares do trabalho intelectual e artístico, arquitectos, engenheiros,
escritores, médicos, enfermeiros, professores, todos elas e elas autoras e
actores do pensamento em acção. É este o seu dies
natalis que importa
efusivamente festejar.
É
aí que vejo e exalto soberanamente a personalidade de um homem que baixou
anteontem à morada comum dos mortais: Joaquim Carreira das Neves, Mestre
jubilado de Teologia na Universidade Católica e, mais do que isso, padre
humilde, caldeado nas humanas veredas da espiritualidade telúrica que nos
deixou o Poverello de Assis.
Todas
as vezes que saía do remanso do claustro, em Lisboa, era para encher de luz a
mentalidade sombria de uma sociedade que se contenta com a roupagem dos mitos
confortáveis da inércia mental. Quer através dos livros, quer em debates
televisivos, quer ainda em conferências de pendor coloquial, Carreira das
Neves navegava da foz para as nascentes, procurando delas exaurir a interpretação
cientificamente sustentada e, para os preguiçosos sonâmbulos da religião,
agitava sem tréguas os alarmes e os desafios da verdade original decorrente das
fontes. Dos vários títulos que publicou, como prova demonstrativa do que acabo
de afirmar, destaco O Coração
da Igreja tem de Bater (2013)
e A Bíblia no Século XXI (2016). As suas posições
teológico-pastorais são testemunhos premonitórios daquilo que, anos depois,
anunciou e continua a ensinar o Papa Francisco. Vertical, corajosa e lapidar é,
entre outras, a seguinte constatação que nos legou, como eminente biblista que
era: A Bíblia não pode ser
tomada como um absoluto, arriscando-se a ser uma tirania à ,maneira do Alcorão
de certos fundamentalistas islâmicos.
Tudo
isto e muito mais deveria alcandorar-se hoje, 1º de Maio, em homenagem ao
trabalhador intelectual que foi Carreira das Neves. E deveríamos tê-lo feito em
vida. Por que ingrata
tendência somos nós picados, que nos leva a subalternizar e esquecer – quando
não, hostilizar, em vida - aqueles que são os nossos mestres e líderes do
pensamento sólido e dinâmico, para só os recordarmos após a morte?... Enquanto
vivos, actuantes, é que devemos segurá-los, para que os nossos passos caminhem
iluminados e conscientes nas encruzilhados da existência. Neste pódio estão
intelectuais de primeira água, nacionais e estrangeiros, como Anselmo
Borges, Bento Domingues, Dimas de Almeida, Leonardo Boff, Hans Kung, Pagola,
Andrès Torres Queiruga, Castillo e tantos outros.
Deixo para o fim um episódio tocante (jamais o esquecerei) quando no Convento
da Luz, em Benfica, convidei Carreira das Neves para vir à Madeira e também à
Ribeira Seca falar sobre temas suculentos numa ilha ainda sombreada por mitos e
tradições atávicas, ele respondeu-me assim, com a frieza de um cientista e com
a aceitação descontraída de um aldeão: “Agora não posso. Tenho um cancro. Mas
penso que daqui a dois anos, diz o médico que já poderei viajar de avião”.
Passaram-se dois anos, passaram-se quatro e o avião levou-o para mais longe.
Ficou, porém, sempre perto de nós, com a sua memória e os seus livros, pelos
quais ouviremos a sua voz de cientista e aldeão, aquela voz frontal e amiga.
Inesquecível!
Honra e gratidão aos trabalhadores de todos os lugares e de todos os tempos!
01.Mai.17
Martins Júnior
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