quinta-feira, 25 de maio de 2017

“LA BELLE ET LA BÊTE” ou “A BELA E O MONSTRO” - NUMA VERSÃO TRUMPAMERICANA

                                                  
       Repugna-me visceralmente  moer o teclado em que escrevo e sujar os dedos  nesse pântano viscoso em que nadam e se nutrem determinados homens-rãs capazes de tudo para mostrar-se na pele do monstruoso  ‘boi-ápis’  das lendas. Dá pelo nome de cinismo, hipocrisia, despudor... E se sou obrigado a tragar o cheiro fétido do charco, faço-o de carreira, dele  fujindo a sete-léguas. É o que farei neste momento, com base na caricatura que o jornal italiano ‘CORRIERE DELLA SERA’ traz hoje em primeira página.
         O primeiro êxodo oficial de Trump pelas arábias, depois pelo Vaticano e ainda pelas instituições europeias não podia ser mais demonstrativo, a começar pela hora em que o fez: acusado de conluio com a espionagem russa, de que resultou a sua eleição, contestado pelas multidões, desacreditado  por uma parte dos correligionários republicanos, ao ponto de enfrentar um eventual empeachment, o homem sai para o exterior e tenta ludibriar a opinião pública, exibindo mãos largas de afectos, profissões de fé no Alá dos muçulmanos, no Jehovah dos Muro das Lamentações e no Deus romano dos cristãos.
         A ousadia do encontro com o Papa Francisco é o cúmulo! Digo ousadia, para não dizer garotice, porque teve o desplante de afirmar aos jornalistas no voo para Roma: “ sinto-me muito honrado pelo convite que me fez o Papa Francisco”, quando, afinal, não houve convite nenhum, o que houve foi um ofício de Trump a solicitar uma audiência para o dia 24 de Maio. E o Papa – comenta o diário espanhol ‘ABC’ – que não faz convites a nenhum chefe de Estado, simplesmente recebe todos os que lho pedem.
         Na troca de presentes, a hipocrisia foi tanta que o assumido xenófobo atreveu-se a  oferecer ao Papa cinco livros de Luther King – “espero que goste”  -  ele, o mesmo que persegue os imigrantes  e reconstrói na América os muros da vergonha derrubados na Europa de 1989. Ao sair da audiência, repete comovidamente à comunicação social o que tinha dito ao Papa: ”É um homem fantástico… Parto do Vaticano, agora  mais que nunca decidido a promover a Paz no mundo”. O mesmo ‘pacifista’ que tinha acabado de fechar negócio de venda de  armamento à Arábia Saudita no montante de 110.000 milhões de dólares       

          O protocolo, a meu ver saloio,  do yanque  embrulhou a família ‘real’ – a mulher-manequim Melania, a filha e, de arrasto, o genro – e a todos ensaiou o ritual litúrgico da ordem:  o véu de viúva-virgem na cabeça, o terço para o Papa benzer, depois a visita dela ao hospital do Bambino Gesu  e, por seu lado,  a filha Ivanka  à comunidade ‘Sant’Egídio’ onde encontrou mulheres africanas vítimas de violência. Uma encenação perfeita, milimétrica.
         Muito lhe deve ter custado ao Papa Francisco engolir tanto cinismo. O rosto carregado e sombrio contrastava com os maxilares abertos do riso descarado do visitante. Francisco tinha em mente a reacção do Trump candidato, quando às suas declarações  – “os que em vez de pontes levantam muros não são cristãos” – o dito cujo candidato classificou-as de “vergonhosas”. Apesar disso recebeu-o. Foi uma entrevista rápida e cautelosa, talvez “de cortar à faca,  em que o Papa marcou a diferença entre Trump e Obama: para este concedeu 50 minutos, para aquele apenas 27.  A oferta de uma oliveira, símbolo da paz, esculpida em medalha, e as suas três encíclicas  sobre  a alegria do Evangelho, o amor reencontrado e, mais directo, sobre  ecologia  e  alterações climáticas, são o gesto sancionatório do bispo de Roma contra quem se recusa a manter os Acordos já assinados pelo anterior inquilino da Casa Branca: o Acordo de Paris sobre o ambiente, o Acordo com o Irão sobre o nuclear e, ainda, o Obamacare, sobre um novo Serviço Nacional de Saúde Americano.
Quanto à presença de Trump nas instâncias europeias, deve ser preciso trazer dentro da gravata,  sarcasticamente vermelha, um escudo do tamanho de todo o despudor que há  no mundo para falar àquela Europa que ele, textualmente, tinha apelado à desagregação total, na sequência do Brexit britânico…
Já demorei tempo demais à beira do charco. Mas é este o mundo pútrido que nos oferecem. Só espero que o povo americano não desista de lutar por uma desinfestação das estruturas e faça regressar o seu país e o planeta às raízes democráticas que o criaram e fizeram crescer.

25.Mai.17
Martins Júnior


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