Repugna-me
visceralmente moer o teclado em que
escrevo e sujar os dedos nesse pântano viscoso
em que nadam e se nutrem determinados homens-rãs capazes de tudo para mostrar-se
na pele do monstruoso ‘boi-ápis’ das lendas. Dá pelo nome de cinismo, hipocrisia,
despudor... E se sou obrigado a tragar o cheiro fétido do charco, faço-o de
carreira, dele fujindo a sete-léguas. É o
que farei neste momento, com base na caricatura que o jornal italiano ‘CORRIERE DELLA SERA’ traz hoje em
primeira página.
O primeiro êxodo oficial de Trump pelas
arábias, depois pelo Vaticano e ainda pelas instituições europeias não podia
ser mais demonstrativo, a começar pela hora em que o fez: acusado de conluio com
a espionagem russa, de que resultou a sua eleição, contestado pelas multidões,
desacreditado por uma parte dos
correligionários republicanos, ao ponto de enfrentar um eventual empeachment, o homem sai para o exterior
e tenta ludibriar a opinião pública, exibindo mãos largas de afectos, profissões
de fé no Alá dos muçulmanos, no Jehovah dos Muro das Lamentações e no Deus
romano dos cristãos.
A ousadia do encontro com o Papa
Francisco é o cúmulo! Digo ousadia, para não dizer garotice, porque teve o
desplante de afirmar aos jornalistas no voo para Roma: “ sinto-me muito honrado
pelo convite que me fez o Papa Francisco”, quando, afinal, não houve convite
nenhum, o que houve foi um ofício de Trump a solicitar uma audiência para o dia
24 de Maio. E o Papa – comenta o diário espanhol ‘ABC’ – que não faz
convites a nenhum chefe de Estado, simplesmente recebe todos os que lho pedem.
Na troca de presentes, a hipocrisia foi
tanta que o assumido xenófobo atreveu-se a
oferecer ao Papa cinco livros de Luther King – “espero que goste” - ele,
o mesmo que persegue os imigrantes e
reconstrói na América os muros da vergonha derrubados na Europa de 1989. Ao
sair da audiência, repete comovidamente à comunicação social o que tinha dito
ao Papa: ”É um homem fantástico… Parto do Vaticano, agora mais que nunca decidido a promover a Paz no
mundo”. O mesmo ‘pacifista’ que tinha acabado de fechar negócio de venda de armamento à Arábia Saudita no montante de
110.000 milhões de dólares
O protocolo, a meu ver saloio, do yanque
embrulhou a família ‘real’ – a mulher-manequim Melania, a filha e, de arrasto, o genro – e a todos ensaiou o ritual
litúrgico da ordem: o véu de viúva-virgem
na cabeça, o terço para o Papa benzer, depois a visita dela ao hospital do Bambino Gesu e, por seu lado, a filha Ivanka à comunidade ‘Sant’Egídio’ onde encontrou mulheres africanas vítimas de
violência. Uma encenação perfeita, milimétrica.
Muito lhe deve ter custado ao Papa
Francisco engolir tanto cinismo. O rosto carregado e sombrio contrastava com os
maxilares abertos do riso descarado do visitante. Francisco tinha em mente a reacção
do Trump candidato, quando às suas declarações – “os que em vez de pontes levantam muros não
são cristãos” – o dito cujo candidato classificou-as de “vergonhosas”. Apesar
disso recebeu-o. Foi uma entrevista rápida e cautelosa, talvez “de cortar à
faca, em que o Papa marcou a diferença
entre Trump e Obama: para este concedeu 50 minutos, para aquele apenas 27. A oferta de uma oliveira, símbolo da paz,
esculpida em medalha, e as suas três encíclicas
sobre a alegria do Evangelho, o
amor reencontrado e, mais directo, sobre ecologia e alterações
climáticas, são o gesto sancionatório do bispo de Roma contra quem se recusa a
manter os Acordos já assinados pelo anterior inquilino da Casa Branca: o Acordo
de Paris sobre o ambiente, o Acordo com o Irão sobre o nuclear e, ainda, o Obamacare, sobre um novo Serviço
Nacional de Saúde Americano.
Quanto
à presença de Trump nas instâncias europeias, deve ser preciso trazer dentro da
gravata, sarcasticamente vermelha, um escudo
do tamanho de todo o despudor que há no
mundo para falar àquela Europa que ele, textualmente, tinha apelado à
desagregação total, na sequência do Brexit
britânico…
Já
demorei tempo demais à beira do charco. Mas é este o mundo pútrido que nos
oferecem. Só espero que o povo americano não desista de lutar por uma
desinfestação das estruturas e faça regressar o seu país e o planeta às raízes
democráticas que o criaram e fizeram crescer.
25.Mai.17
Martins Júnior
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