Viva
a Vida!
Pego
na chama acesa com que fechei a simulação – a um tempo, humorística e séria,
muito séria – tirada do obituário que a imprensa reproduz todos os dias com
nomes iguais ou diferentes do nosso. Hoje, é a Vida que me interessa. Vê-la saltitante
como um pássaro e crepitante como um facho de luz nas nocturnas encostas do
vale.
´Nesta
noite não saio da ‘minha’ capitania de Machico, pioneira dos capitães
donatários da ilha, há seiscentos anos.. Alargo os olhos e deixo entrar as
fogueiras estivais que neste sábado alumiaram as rochosas e seculares montanhas
da minha terra. Para quem as vê pela primeira vez, fica extasiado. Quem as
repete duas ou mais vezes será tentado a
bocejar, desconsolado: “ mais do mesmo”.
Engano. A tradição dos fachos é sempre nova e rediviva para as gentes de
Machico. Há quase oitenta anos que os acompanho desde criança e acho-os tão
cativantes como desde a primeira hora. Mais renovada e mobilizadora é a
tradição para a perto de centena e meia de mãos, todas jovens que arduamente se
levantam até aos altos socalcos previamente preparados para o grande anfiteatro
luminoso de Machico. Honra e valor a essa juventude que mantém acesos não
apenas os fachos mas a memória dos seus antepassados.
Entretanto,
desbravemos as remotas veredas da história e lá encontraremos, decepcionados, a
genuína identidade dos fachos. Aquilo que hoje nos delicia e aquece a
sensibilidade, afinal, nasceu num temeroso ambiente de roubos e predações que com
que os corsários e piratas dos mares amotinavam os incautos habitantes das ilhas.
Para defender-se dos invasores, usavam como meio de comunicação nocturna o lume
vigilante nos picos estratégicos do
território, a fim de que as vilas e aldeias preparassem a defesa, quer
munindo-se de armas artesanais, quer fugindo para as furnas situadas nas serras.
Aqui radica a toponímia de alguns desses picos, como o Pico do Facho em Machico
e o Pico do Facho no Porto Santo.
Depois,
fortificadas as ilhas e debandados os corsários, o povo deixou-se fascinar pelo
sortilégio das chamas desenhando a silhueta das montanhas. E continuou a
acender fogueiras. Fez a catarse do medo com a metamorfose do lume vivo: o fogo
já não era o alarme convencional contra o terror mas uma homenagem a uma
divindade, neste caso, o Santíssimo
Sacramento.
A
espantosa imaginação popular que do medo fez beleza e encantamento! Não fossem os corsários da costa
e hoje não teríamos os fachos, ex-libris de Machico, na “Festa do Senhor”,
último domingo de Agosto!
Não
é caso único na historiografia do Cristianismo. São inúmeras as tradições e
rituais pagãos, desde Grécia a Roma, que a Igreja oportunamente (e oportunisticamente
também) acolheu e deles se apropriou para dar-lhes uma nova veste, sacralizando
assim as grandes festas pagãs em homenagem aos deuses, porque tais festas
mantinham-se ainda arreigadas nos povos
convertidos. O caso mais flagrante cinge-se ao Dies Natalis, o Natal cristão, que teve origem nas famosas Saturnália, festas dedicadas ao deus Sol
sob o signo de Saturno, realizadas pelo Império Romano entre 17 e 25 de Dezembro. Só a partir do
século IV, a Igreja ‘canonizou’ os costumes pagãos em honra do deus Sol,
substituindo o Sol pagão por Jesus Cristo que passou a designar-se por Sol Justitiae, Cristo - Sol da Justiça,
como se canta nas antífonas.
Muitos
outros rituais poderia citar. Mas aqui o que importa relevar é a vantagem filosófica
e prática de não arrasar liminarmente as tradições populares. Se elas se
identificarem com a idiossincrasia de um povo, é sensato preservá-las, segurando
o que de valorativo possuírem e, se algo de menos digno ou anacrónico
comportarem, a solução será a de operar-lhes uma metamorfose interpretativa,
transfigurando-as e imprimindo-lhes um carácter nobilitante, actual,
construtivo. Neste caso, suponho poder aplicar-se o princípio geral do Direito:
Pacta sunt servanda, os pactos ou os
acordos devem ser conservados, cumpridos. E as tradições também.
Muito
longe levar-nos-ia esta tese. Em vários quadrantes da sociedade. Por hoje, a
convicção de que valeu a pena conservar a tradição originalmente radicada nos
assaltos dos corsários da costa, para que o nosso olhar se enchesse da luz
envolvente do vale de Machico, com “Os Fachos na serra, Altos a brilhar”.
Ontem, hoje e amanhã.
27.Ago.17
Martins Júnior
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