"É
do fundo da terra - ou das intocáveis alturas, tanto faz – que vos escrevo. Sem
minha autorização estenderam ontem o meu nome numa prega de jornal, embrulharam-no
e atiraram-me para a vala sem regresso. Antes,
porém, tiveram a preconceituosa devoção de me rezar ofícios em cerimónias
fúnebres molhadas de água benta.
E
‘práqui’ estou. Abri de novo os olhos que os familiares me fecharam, reanimei
as mãos e os dedos e eis-me neste miradouro subterrâneo de onde tudo se vê. É
daqui que vos vejo a todos e vos escrevo.
Agradeço,
em primeiro aceno, a horizontal posição em que me colocaram no esquife. Porque,
agora sim, tenho ‘todo o tempo do mundo’
para olhar os altos, deliciar-me com as colunas milenares das montanhas da
minha ilha, descansar as pupilas nas estrelas, ir mais além e mais acima do que
quando estava convosco. Esse foi o tempo em que os olhos me pendiam para o chão
rasteiro do quotidiano, os meandros sinuosos, as nervuras interesseiras, as
intrigas, os fogos fátuos de fugazes prazeres. Percebo agora, a olho-nu, que em
mais de metade da vida, as pessoas são
consumidas inutilmente no rescaldo baço de incêndios que outros atearam. Faltou-me
o ar puro da razão prática para desenlear-me das muitas teias de aranha em que,
distraído e ingénuo, me deixei enredar.
Nesta
cidade onde cabe todo o planeta e onde todos vós tendes apartamento marcado, a
paz serena advém de um outro reino, cuja constituição tem um Artigo Único: ”Aqui
todos são iguais. Inelutavelmente”! Ditoso império da igualdade congénita, onde
não há palácios nem casebres, não há bancos nem falências, não há brâmanes nem párias,
senhorios e caseiros, exploradores e explorados. Aqui descobri, tal como o velho Diógenes da Antiga Grécia, que não há
diferença alguma entre a ‘caveira’ do meu pai pescador e a ‘caveira’ do armador, patrão, ditador, papa ou rei. Nenhuma,
além desta: o operário, mesmo pobre, sorri sob o lençol com que a mãe-terra o
abafou, enquanto o agiota, avarento e sôfrego, geme sob o peso das barras de
ouro que deixou no rez-do-chão da sua mansão.
Não
acabarei esta carta breve – mais breve que a própria vida – sem confidenciar-vos
mais uma descoberta. É que, agora vejo, tudo quanto foi meu enquanto por aí
andei teve apenas uma função: o valor instrumental. Talvez que ainda não tivésseis
dado por isso. Casa, carro, livros, euros, lati-ou-minifúndio, poder, galões,
comendas – tudo, tudo não passou de um instrumento funcional, uma ferramenta
emprestada. Queiramos quer não, o instrumento passará para outras mãos, a
ferramenta será dada a outro utilizador. Também provisório, a prazo, sem saber
se é longo ou curto. Nada foi meu e tudo será de outros.
Falta-me
ainda dizer, sem ser preciso adivinhar, que se alguns ficaram tristes com a
participação da agência funerária, outros terão sentido um gozo libidinoso com
a notícia. Mal sabem – saberão quando aqui chegarem – quanto me divirto com
tudo isso. Cá os espero.
À
moda de testamento (não me deram tempo de fazê-lo) juro que teria dispensado
anúncios e participações, romeiros oficiais e oficiantes, espectáculos, turíbulos
de incenso, lânguidas ladainhas policopiadas. Aqui, o Justo Juiz deste
Super-Supremo declarou-me que não aceita cunhas nem advogados nem alegações
finais. Sou eu que trago tudo isso comigo. Mais ninguém!
De Profundis, Valsa
Lenta - estou
contigo, irmão Cardoso Pires. E como tu, eu vou subir os degraus desta cidade
submersa. E voltarei, como tu, transportando nas minhas mãos o Código das
Profundezas onde me deitaram. Reger-me-ei pelos seus sábios normativos, para
implantar na minúscula nesga do meu
território o inalcançável Reino da Igualdade onde crescerão as violetas de
uma transitória Felicidade".
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E voltei, pessoal. Ainda não fui desta. Porque o “José Martins Júnior” da participação-supra não sou eu, mas um meu homónimo, que até hoje eu próprio desconhecia. Paz à sua alma. Agradeço-lhe a oportunidade que me deu de acompanhá-lo, assim, tão de perto, nesta sua viagem que um dia será minha. E nossa, amigos.
E voltei, pessoal. Ainda não fui desta. Porque o “José Martins Júnior” da participação-supra não sou eu, mas um meu homónimo, que até hoje eu próprio desconhecia. Paz à sua alma. Agradeço-lhe a oportunidade que me deu de acompanhá-lo, assim, tão de perto, nesta sua viagem que um dia será minha. E nossa, amigos.
Viva
a Vida!
25.Ago.17
Martins Júnior
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