sexta-feira, 25 de agosto de 2017

CARTA DO OUTRO MUNDO


"É do fundo da terra - ou das intocáveis alturas, tanto faz – que vos escrevo. Sem minha autorização estenderam ontem o meu nome numa prega de jornal, embrulharam-no e  atiraram-me para a vala sem regresso. Antes, porém, tiveram a preconceituosa devoção de me rezar ofícios em cerimónias fúnebres molhadas de água benta.
E ‘práqui’ estou. Abri de novo os olhos que os familiares me fecharam, reanimei as mãos e os dedos e eis-me neste miradouro subterrâneo de onde tudo se vê. É daqui que vos vejo a todos e vos escrevo.
Agradeço, em primeiro aceno, a horizontal posição em que me colocaram no esquife. Porque, agora sim, tenho ‘todo o tempo  do mundo’ para olhar os altos, deliciar-me com as colunas milenares das montanhas da minha ilha, descansar as pupilas nas estrelas, ir mais além e mais acima do que quando estava convosco. Esse foi o tempo em que os olhos me pendiam para o chão rasteiro do quotidiano, os meandros sinuosos, as nervuras interesseiras, as intrigas, os fogos fátuos de fugazes prazeres. Percebo agora, a olho-nu, que em mais de metade da vida, as pessoas  são consumidas inutilmente no rescaldo baço de incêndios que outros atearam. Faltou-me o ar puro da razão prática para desenlear-me das muitas teias de aranha em que, distraído e ingénuo,  me deixei enredar.
Nesta cidade onde cabe todo o planeta e onde todos vós tendes apartamento marcado, a paz serena advém de um outro reino, cuja constituição tem um Artigo Único: ”Aqui todos são iguais. Inelutavelmente”! Ditoso império da igualdade congénita, onde não há palácios nem casebres, não há bancos nem falências, não há brâmanes nem párias, senhorios e caseiros, exploradores e explorados. Aqui descobri, tal como  o velho Diógenes da Antiga Grécia, que não há diferença alguma entre a ‘caveira’ do meu pai pescador e a ‘caveira’ do  armador, patrão, ditador, papa ou rei. Nenhuma, além desta: o operário, mesmo pobre, sorri sob o lençol com que a mãe-terra o abafou, enquanto o agiota, avarento e sôfrego, geme sob o peso das barras de ouro que deixou  no rez-do-chão da  sua mansão.
Não acabarei esta carta breve – mais breve que a própria vida – sem confidenciar-vos mais uma descoberta. É que, agora vejo, tudo quanto foi meu enquanto por aí andei teve apenas uma função: o valor instrumental. Talvez que ainda não tivésseis dado por isso. Casa, carro, livros, euros, lati-ou-minifúndio, poder, galões, comendas – tudo, tudo não passou de um instrumento funcional, uma ferramenta emprestada. Queiramos quer não, o instrumento passará para outras mãos, a ferramenta será dada a outro utilizador. Também provisório, a prazo, sem saber se é longo ou curto. Nada foi meu e tudo será de outros.
Falta-me ainda dizer, sem ser preciso adivinhar, que se alguns ficaram tristes com a participação da agência funerária, outros terão sentido um gozo libidinoso com a notícia. Mal sabem – saberão quando aqui chegarem – quanto me divirto com tudo isso. Cá os espero.
À moda de testamento (não me deram tempo de fazê-lo) juro que teria dispensado anúncios e participações, romeiros oficiais e oficiantes, espectáculos, turíbulos de incenso, lânguidas ladainhas  policopiadas. Aqui, o Justo Juiz deste Super-Supremo declarou-me que não aceita cunhas nem advogados nem alegações finais. Sou eu que trago tudo isso comigo. Mais ninguém!
De Profundis, Valsa Lenta -  estou contigo, irmão Cardoso Pires. E como tu, eu vou subir os degraus desta cidade submersa. E voltarei, como tu, transportando nas minhas mãos o Código das Profundezas onde me deitaram. Reger-me-ei pelos seus sábios normativos, para implantar na minúscula  nesga do meu território o inalcançável Reino da Igualdade onde crescerão as violetas de uma  transitória Felicidade".
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E voltei, pessoal. Ainda não fui desta. Porque o “José Martins Júnior” da participação-supra não sou eu, mas um meu homónimo, que até hoje eu próprio desconhecia. Paz à sua alma. Agradeço-lhe a oportunidade que me deu de acompanhá-lo, assim, tão de perto, nesta sua viagem que um dia será minha. E nossa, amigos.
Viva a Vida!
25.Ago.17

Martins Júnior  

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