Se os decibéis sonoros se transformassem em fogueiras (Vade retro, credo abrenuntio) podíamos
pegar rastilho num qualquer lugarejo da ilha e teríamos durante 90 dias um poderoso
anel de fogo na cintura, no dorso, da cabeça aos pés, desta paisagem estival em
que se tornou a Madeira. Não se sai de uma aldeia, vistosamente engalanada, que
não se entre noutra a abarrotar de gente envolvida ‘à sombra’ de plásticos
multicolores que se abanam com o ribombar dos foguetes e os estridentes acordes
do palco. O povo andarilho lá vai de poiso em poiso, ao toque do arraial e à
pala do santinho ou da santinha, tantas vezes os mais desconhecidos da festa,
mas que lhe dão uns salpicos de devoto conforto.
São assim os nossos arraiais,
rivalizando uns com os outros, quase numa corrida à camisola amarela. Dos programas
publicados, lanço um olhar exclusivo sobre o panorama musical. A alegria exige animação,
muita música, sob a batuta do ‘chefe de orquestra’: Façam barulho! É curioso
observar, pelos anúncios públicos, que os géneros são muito similares, os
solistas e respectivas bandas vão passando de um arraial para outro,
chegando-se ao cúmulo que alguém exprimiu assim: “Basta ir a um só que fica
tudo visto”. Referia-se à frágil, senão mesmo nula, originalidade distintiva deste ou daquele
lugar. Para desenfastiar, lá vêm do rectângulo os ‘cromos’ animadores das
feiras, alguns até com uma salada pimba que revolve o debulho. E o povo gosta,
diverte-se, esquece as pisadas da vida.
Profundando a análise dos factos, não
será difícil concluir que a falta de identidade característica que distinguiria
uma festa da outra deve-se a outra lacuna: a falta de criatividade participativa
da população local na construção do seu programa de animação. A ausência do
elemento Povo no palco varre todo o encanto típico daquela festa, por mais rica
e espectacular que seja. O Povo demite-se e passa procuração a terceiros que
nada trazem de representativo da sua terra. Dir-se-ia, à moda antiga, é a “mesma
chapa seis” em todas as paragens.
Longe de mim o culto de um regionalismo
doméstico (paroquial, como displicentemente classificam alguns) e,
muito menos, qualquer sombra de menosprezo pelos artistas profissionalizados,
de cá ou de lá. Aliás, em datas festivas, há sempre uns aperitivos diferentes
da ementa quotidiana. Mas o que me parece indissociável da festa é o perfil marcante
da sua população, coreografia adequada e
a produção literária autóctone dos poetas populares, que todas freguesias têm,
particularmente nos meios rurais e suburbanos. E toda essa caracterização visual ao serviço de conteúdos vivos, tocantes
e quase sempre atractivos. Pela sua simplicidade e pela sua autenticidade. É
isto que faz falta.
Sem pretender ‘embandeirar em arco’
exclusivo uma localidade já conhecida na Madeira, apraz-me reconhecer e prestar
homenagem aos mais de setenta participantes em palco, na última festa da
Ribeira Seca, cumprindo uma tradição antiga. Os nossos ‘bailarinos’, desde os
quatro e seis anos até aos de setenta (estes, antigos executantes de há quase
cinco décadas) desfilaram em palco, cada qual com o seu traje diferenciado, idealizado
por cada grupo ou sítio, apresentando o
perfil da população residente, as suas tradições laborais, os moinhos
artesanais de outrora, o tear, as vindimas, os emigrantes, as justas ambições dos jovens, enfim,
fragmentos da sua história, traduzidos em canto e dança. Da enorme afluência de
espectadores, ninguém arredou pé enquanto os nossos ‘artistas’ estiveram em
palco.
Festa é Festa – lá diz a velha cantiga.
Desejável, porém, seria que a festa não
fosse apenas um narcótico barato, alienante, tão fortuito com o foguete que
assusta o sol e fica logo em nada, estatelado no chão. O arraial bem pode
ultrapassar a estaca rasca – “só para comer e beber”, é o que mais se ouve.
Pelo contrário, deve alimentar a auto-estima colectiva, a exaltação de um Povo,
o itinerário dos seus antepassados, enfim, o arraial pode preencher simultaneamente
o corpo e o espírito. Não apenas, os arraiais populares, mas até os grandes
concertos internacionais. Recordo aqui, a título exemplificativo, bandas
famosas como os U2, Bruce Springsteen, os Downtown. E tantos outros de craveira mundial
que fazem das guitarras, da voz e das baterias não apenas episódios de diversão mas
poderosas ondas comunicacionais de mensagens firmes que sustentam os grandes
valores da condição humana.
Transcrevo uma das estrofes com que o
grupo de jovens locais encerrou a sua actuação:
Nas ilhas do vulcão
Nas terras do basalto
Erguemos bem alto
A chama deste grito
E o chão de granito
Brada sem demora
O futuro é nosso
Esta é a nossa hora
13.Ago.2015
Martins
Júnior
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