quinta-feira, 23 de agosto de 2018

CAMPA RASA OU PANTEÃO: QUEM TEM RAZÃO?


                                                                    

                Nesta estação ligeira, embora acalorada pelo sol e pela floresta indefesa, paira nos ares a sombra inquietante de um quase-fantasma: o debate. Ele aí está ao virar da esquina, ao dobrar a folha do jornal. Pode, pois, arvorar-se em tarja larga o axioma: Debater é Viver.
         E o debate faz bem. É saudável. Não precisa ser apaixonado, gárrulo, maniqueísta. Debate, exige-se-o dialogante, ponte pênsil entre duas certezas opostas. Porque, ao fim da refrega suspensa, chegamos sempre à síntese final: a razão está dos dois lados. Por outras palavras: no debate sério e transparente, o pêndulo da verdade balanceia-se entre um extremo e outro, há parcelas de luz divididas entre as penumbras em litígio. Daí, a serenidade e  a objectividade, como pilares fundamentantes do verdadeiro debate.
         Sem esquecer o facto inicial que deu o mote a estes dias – o debate – chega-nos imprevistamente , mas muito oportunamente, a questão difundida nas redes e na comunicação social: ZECA AFONSO NO PANTEÃO NACIONAL! Sim ou não?
         A Sociedade Portuguesa de Autores, promotora da iniciativa, levanta um mausoléu, um trono, um altar e aí cita Luís Vaz de Camões, exaltando o Cantor de Abril “entre os barões assinalados… os que da lei da morte se vão libertando”.  Porque ele merece. Porque todos os portugueses são-lhe devedores da Liberdade que ele cantou, sofreu e ajudou a implantar em Portugal.  E continua o clamor apoteótico: “Ditosa Pátria que tal filho teve”!
         Mas do outro lado do rio da História, está alguém que não cita Camões nem Pessoa, mas que em silêncio vai curtindo uma saudade irmanada com o pensamento do Zeca: “Ele recusou sempre os louros do regime, voltou as costas aos medalhões decorativos da hipocrisia oficial. Até deixou marcado em caracteres de dor macerada mas reconfortante o seu último desejo: sepultar-se em campa rasa… Como, pois, renegar a última vontade do seu autor?... Seria uma traição ao pensamento e à coerência existencial de Zeca Afonso”!
         Este o argumentário sentido do outro lado da ponte do debate.
         Então, em que ficamos? Quem tem razão – a SPA ou a família do precursor de Abril? E quem se atreverá a dirimir a questão? Em boa verdade, ninguém. Porque ambas as partes têm razão. “É o drama deste mundo – escreveu Gilbert Cesbron – todos têm razão”. Porque tudo depende da cor dos olhos que vêm a paisagem, o rio, o debate.
         E que farão as “hostes” em confronto? Gritar, terçar armas, guerrear por causa de Zeca Afonso? Mas como, se ambos os redutos pretendem o mesmo objectivo – estar com Zeca Afonso?!...
         Eis aqui o paradigma de todos os debates. Há sempre parcelas de luz nas duas frentes em litígio. Daí, os dois pressupostos estruturantes de qualquer debate: Serenidade e objectividade.
         Pela minha parte, confesso a minha tímida oscilação entre os dois pilares da ponte pênsil e o meu coração balança entre os dois. Entretanto, ao recordar essa tarde memorável em que me juntei à multidão-povo genuíno, cantando pelas ruas da cidade todas as “Grândola’s” do mundo,  antes de vê-lo romper a terra-campa rasa onde quis  ficar, deixo aqui expresso o meu voto, num breve excerto, transcrito nos “Poemas Iguais aos Dias Desiguais”,  por ocasião do 30º aniversário da sua morte:

FALA DO ZECA NA LOUSA 1606
Nem mausoléu nem flores
Nem mesmo campa rasa
Nem tubas nem tambores
Não me tragam rosas bem-me-queres
Porque eu não estou aqui
Nunca foi esta a minha casa

Vagueio errante mas não errado
E estou sempre onde estiveres
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Eu estou em ti
Tu és o meu país
Que desbravo e cavo
Para encontrar
Vermelho como um cravo
O corpo morto do meu povo cativo
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Eu não morri
Porque vivo em ti

23.Ago.18
Martins Júnior

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