Após os considerandos –
plenamente lógicos para uns, estranhamente pesados para outros – colhidos no
cenário da nossa memória colectiva em redor do ‘malfadado’ Largo da Fonte,
fica-nos a incomensurável versatilidade do espírito humano, sobretudo quando
abandona o primado da razão para resvalar inconscientemente pelas ravinas do
mito, do sensitivo, do imediato, tantas vezes agarrado a determinadas formas de
religiosidade primária. São incontáveis os ícones e talismãs que a imaginação
popular recria e às quais atribui uma valoração cirúrgica, como um meticuloso receituário de farmácia cegamente formatado para
cada mazela do quotidiano. Mais vulgarizadas
são as velas, com ou sem pavio, naturais
ou electrónicas, que obedecem como ‘escravas do Senhor’ ao tinir da moeda caída
na caixa da santinha. Mais impressivo, porém, é o impacto das procissões em que
nos braços dos romeiros e das romeiras passeiam-se garbosamente pernas, braços,
barrigas, cabeças de criança, tudo moldado em escantilhões de cera ou estearina
barata. Supõe-se que, pela ética do pudor, outros órgãos e membros não se
despem na sacra via pública, ainda que de cera se tratasse.
O menos
e o mais que se pode dizer é a exigência de respeito por parte dos
espectadores. Concorde-se ou não, manda a sã urbanidade que se respeite a
relação contratual do crente com o objecto ou com o sujeito da sua crença.
Andando eu a cogitar
sobre esse estendal de ‘promessas’ deambulando pelas ruas e ruelas, eis senão
quando cai-me nas mãos uma breve nota do jornal EL PAÍS, cujo conteúdo se encaixa como carapuça no crânio, a
propósito dos signos e cortejos rogatórios. Trata-se, imaginem só, da notícia
sobre uma determinada igreja, da época românica na região da Cantábria, que
ostenta nas colunas, nos arcos e nos capitéis, objectos ritualmente sacrílegos
para um templo: são os órgãos genitais, tanto de homem como de mulher.
Cinzelados na pedra milenar e acusando já a erosão dos tempos, eles lá estão bem
visíveis e apelativos. Digo “apelativos”, porquê?... Precisamente porque (diz a
tradição local) essas ‘escabrosas’ configurações servem para afugentar pragas e
maldições. Mais concretamente, livram de perigos iminentes, concitam a benevolência
divina, numa palavra, são os ícones e os signos que o Homem do século XXI
tributa aos patronos das suas causas...
A misteriosa
versatilidade da imaginação humana quando confrontada com a nebulosa dos seus
problemas!
Porque o assunto é muito
sério e abarca miríades de incógnitas, ainda sem resposta, voltaremos a
debruçar-nos sobre a distância abissal que nos abrem os cultos e superstições
em que inconscientemente navegamos.
17.Ago.18
Martins Júnior
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