Em
tempo que é passatempo, lá vai este ‘contra-o-tempo’. É do século XVI.
Aqueles
olhinhos de fresta no alvaiade de um rosto encimado por uma cereja em forma de
tricórnio cardinalício pertencem ao eminentíssimo Ascanio da nobilíssima
família Colonna, detentora de distintos cargos na Santa Sé, onde se conta o de arcebispo-bibliotecário
do Vaticano. Ascendeu à púrpura de príncipe da Igreja, com o título de cardeal
e, no seu portfólio, brilha com excepcional fulgor o privilégio de ter sido Mecenas do imortal Miguel Cervantes, que lhe
dedicou o poema Galateia.
O
pitoresco de todo este cenário está na descoberta que acaba de fazer a
historiadora Patrícia Marin Cepeda na biblioteca do mosteiro beneditina de Santa Escolástica, em Itália. Foi uma mera
coincidência: investigava ela a personalidade e a obra de Cervantes, quando
imprevistamente lhe salta aos olhos um grosso volume, cuidadosamente
seleccionado e atado de uma forma singular. Abriu-o e eis que lhe faíscam nada
menos que 500 cartas de amor dirigidas ao eminente, culto e piedoso cardeal
Ascanio Colonna. Refere Raquel Vidales, jornalista do El País, que as remetentes – casadas, solteiras e até uma freira -
eram todas oriundas de nobres famílias de Alcalá, onde em tempos vivera Ascanio,
A
autora da reportagem, com um misto de arrobo libidinoso e picante ao mesmo
tempo, puxa para título uma dessas declarações de amor, assinada pelo
pseudónimo literário Hernarda, Pastora de
Henares: “Não tenho outra glória no mundo senão ser a tua escrava”. E ainda
estoutra, da autoria de Ninfa Castalia: “A
senhora (…) deseja-te mais que a vida, mais que a própria alma”.
As
respostas do cobiçado cardeal não são menos espirituais e espirituosas. Mas
pouco interessam de momento. A historiadora promete aprofundar aquele maço de
manuscritos e publicar o que achar útil para a compreensão da época clássica,
em que a Igreja promoveu muito impressivamente as artes e as letras. E outro
não é também – além de pura diversão – o
objectivo deste apontamento: interpretar a história, os seus contornos, as
consequências, compará-las e, daí, extrair conhecimentos positivos para
entender a evolução dos tempos. Chegaremos bem depressa àquele axioma bíblico
que vem de muito longe: Nihil sub sole
novi – “nada de novo acontece debaixo do sol”, nada que já não tenha
acontecido.
E
já agora, a talho de foice. fazemos votos que o nosso ilustre conterrâneo,
recentemente nomeado arcebispo-bibliotecário do Vaticano (cargo idêntico ao
titular da família Colonna) possa desentranhar dos fundos tumulares daqueles
Arquivos segredos ocultos (que já não serão) para interpretarmos valorativamente o percurso
do condição humana, peregrina ao longo
da história.
07.Ago.18
Martins Júnior
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