Curvaram-se até ao chão os cinquenta escravos que suportavam aos ombros o “Rei Chino”. Ele desceu, anafado e majestoso, poisando o calçado cor-de-fogo em cima daqueles dorsos amarelos transformados em degraus de carne humana. Curvou-se ele, também, num ângulo de noventa graus, quando apareceu à porta um homem robusto, olhos vivos, penetrantes, que se identificou como o pai do Menino. À pergunta de protocolo – “Quem sois e a que vindes”? – o “rei” prontamente atalhou:
“Sou eu o maior do mundo, tenho sob o meu jugo
biliões de escravos, sou eu que alavanco a economia do planeta. E mais, eu”…
O
judeu anfitrião cortou-lhe a palavra e o passo: “Mas a que vindes, dizei”.
-
Trago ali o dragão dos deuses, carregado da tapeçaria mais fina, trago ouro a
rodos, feito do sangue do meu povo amado. E mais: trago duzentos escravos meus
para oferecer-tos. Permite que eu veja o Menino. Ou, ao menos, vai dizer-lhe
que está aqui o “Rei da China e das Arábias”.
José
nem precisou de consultar mais ninguém:
-
Desaparece deste terreiro. Este é um chão sagrado, onde não há opressores e oprimidos,
senhores e escravos. Aqui todos são
iguais. Leva esse ouro e restitui-o aos corpos de onde os arrancaste a ferros.
Volta ao teu reino, acaba com o trabalho forçado de milhões de crianças
famintas, destrói a escravatura. Depois,
só depois, podes chegar até aqui, onde serás digno de entrar no meu casebre.
Discretamente,
sem alarido, toda a comitiva real virou atrás e foi postar-se, envergonhada, na
rectaguarda da grande parada.
De
imediato, apressa-se o “Rei das Estepes”, musculado, ritmo binário no andar,
vai ele mesmo à frente dos tanques cor-de-chumbo, comandante-em-chefe da
embaixada russa. E antes que José fechasse a porta, puxa-o violentamente pelo
braço e dispara de rajada:
-
Diz a esse Menino que eu não lhe trago escravos e já deixei de ‘comer
criancinhas ao pequeno almoço’. Eu sou pela revolução e pela igualdade de classes.
Venho de um passado hostil aos czares e aos privilégios. A minha bandeira
sempre foi o proletariado, a defesa dos indefesos, a protecção da infância e a
segurança dos velhinhos. Por isso, conta lá isto ao teu Menino: Está aqui o “Rei
Russo”, traz-te armamento, o nuclear, os tanques, os mísseis. Comigo estás
seguro.
José
tentou fechar a porta entreaberta, mas não conseguiu, porque o russo encostou a
peitaça como couraça dura contra os gonzos. Tinha ainda mais uma prenda para o
Menino:
-
Aqui tens a oitava maravilha do mundo. Leva-a lá dentro, mostra ao Menino e à
sua Mãe a minha prenda, de todas a mais poderosa. Com isto, em casa ou na rua,
no céu ou na terra, ninguém fará mal ao Menino, nem a ti, nem a tua mulher.
O
dono da casa abriu o pacote e ficou intrigado com o que viu lá dentro. Teve
medo de tocar-lhe. É então o próprio “rei” que lhe explica: “Esta é aquela arma
supersónica, a exterminadora, que os
nossos cientistas classificaram de Kinzhal, também chamada de ‘Avangarde’. Com
ela, nenhum Herodes ou Pilatos ousarão meter-se convosco. Eles fogem a
sete-léguas”.
O nosso rabino, testemunha ocular de todo este
movimentado espectáculo, contou aos jornalistas a repulsa de José, depois de
fechar a porta, resmungando lá dentro:
-
Vai-te embora. A minha casa é uma casa de paz, não é nenhum ‘bunker’ de guerra.
Precisamos de pão, não de bombas de espécie alguma. Vai, destrói no gelo da
Sibéria todas essas máquinas assassinas. Depois disso, só depois, volta aqui a
Nazaré e traz contigo o trigo, a água, a bandeira da concórdia e da paz
universal. És nosso convidado.
Foi
enorme o desaire, diz o nosso rabino. O musculado ginasticado “rei” meteu o rabo entre as pernas e foi juntar-se,
lá atrás, ao “Rei Chino”.
(continua)
11.Jan.19
Martins Júnior
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