Poucas
palavras serão precisas para exprimir e denunciar uma nova forma de racismo,
aquela que sempre se infiltrou no ADN dos povos, mas que na hora que passa
surge quase instintivamente, rasando a epiderme agressiva dos intervenientes.
Digo ‘sobretudo na hora que passa’ porque é esse um dos efeitos colaterais da
guerra Rússia-Ucrânia.
Em termos eufemísticos, digamos que
estamos perante um dos tropos da linguagem ou figuras de estilo, mais conhecido
por “metonímia” que consiste em tomar o todo pela parte ou a parte pelo todo.
Tudo seria inócuo se não estivessem em
jogo vítimas inocentes, retaliações tribais que humilham e esmagam nações e
gerações. É fenómeno indissociável do quotidiano actual a aversão a tudo quanto
‘cheire’ a Moscovo. Não me refiro às sanções justíssimas que por todo o mundo
têm sido decretadas contra Putin e o seu regime perverso. O que está em causa (e
não será de todo admissível) é o estigma do ódio visceral contra quem é
condenado publicamente, só por este crime: ter nascido na Rússia.
Entrando mais assertivamente no vírus
deste estigma, cresce a indignação desenfreada contra os soldados que vestem o
camuflado de guerra ao serviço de Putin. Quem nos dera perscrutar o povo russo
e seus filhos ‘carne-para-canhão’… Não
tenho a menor dúvida de que o povo invadiria as ruas, ocuparia os paióis e não
deixaria sair nem mais uma arma, nem mais uma munição.
Pergunto:
será justo invectivar o cidadão comum nascido na Rússia, ou o Zé-soldado do Kremlin
ou o simples migrante que habita noutro país?
Semelhante
equívoco se passa com o americano normal que tem de arrostar com os crimes de Bush no
Iraque ou de Trump no Capitólio. Para já não falar do anátema, até hoje
pendente contra o povo alemão, só porque entre os seus antepassados figura o
monstro dos fornos crematórios.
Como
português que sou, escuso de ir tão longe respigar sensibilidades
contraditórias nesta área. Aquando da guerra colonial, Salazar e o seu círculo autista,
hermeticamente fechado sobre si mesmo, proclamavam o heroísmo dos nossos ‘valentes
soldados, heróis da pátria’, louvados e medalhados em campanha. Mal sabiam eles
– mas o Zé-soldado português sabia-o bem e sentia-o na pele – que os nossos
jovens lá estavam insatisfeitos, revoltados. E pior estavam os seus familiares,
chorando indignados a morte dos seus filhos em terra alheia. Seria justo
condenar o cidadão comum de Portugal por
causa da brutalidade cega de ‘Um homem Só’ ?... E foi tal a revolta do ‘Bom
Povo Português’ que levou os militares lusos ao derrube do regime da ditadura!
E
que dizer do cartilha artesanal de guerra, made
in Madeira, sustentada por um indivíduo da ‘quinta coluna selvática’ que
instigava ódio feroz a irmãos portugueses do Continente, cujo crime consistia
tão-só em ter nascido fora da ilha?! “Vimos, sabemos e lemos, não podemos
ignorar”!
É
imperioso estarmos atentos e não permitirmos que novas e capciosas formas de
racismo poluam Portugal e os que aqui habitam! Não deixaremos que a parte comprometa e
envergonhe o todo. A este propósito, o articulista de Le Monde mui criteriosamente observava numa reportagem recente: “Por
esta crescente onda neo-racista, qualquer dia estaremos impedidos de
representar Anton Tchekhov, o grande dramaturgo russo?”.
11.Mar.22
Martins Júnior
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