Por
mais estranho e paradoxal que se nos afigure, é no mar alto das vagas revoltas
que, por um lado, se revelam os ânimos dos mareantes e, por outro, se
distinguem os genuínos timoneiros das grandes naus. As águas paradas,
indistintas, não têm rosto nem alma – leia-se, identidade.
Os
bárbaros acontecimentos perpetrados pela Rússia em território ucraniano
trouxeram à tona da história a séria questão das identidades religiosas, ou
seja, o pêndulo e o lugar da Religião no grande teatro da Política. Nesta
especial conjuntura, o caso toma proporções gigantes, fratricidas, visto que
estão em litígio frontal dois irmãos da mesma família, mais precisamente dois
braços do mesmo corpo – a Igreja Cristã Ortodoxa – ao ponto de estarmos à beira
de um iminente cisma dentro da mesma milenar instituição.
Em
breve comentário, cinjo-me ao recente artigo de Cécile Chambraud, jornalista de
Le Monde, tendo por fundo a posição
bicéfala da Igreja Ortodoxa face à invasão da Ucrânia. Posicionado entre as
tropas invasoras de Putin, apresenta-se o Arcebispo de Moscovo, a cuja
jurisdição pertencem oficialmente os bispos das dioceses ucranianas. Enquanto o
hierarca moscovita cauciona religiosamente a ofensiva militar, conferindo-lhe
uma “dimensão metafísica, contra as forças do mal que se opõem à unidade do
povo e das igrejas russas”, o episcopado
da nação martirizada deplora e condena a “guerra” (nomenclatura esta, “guerra”,
proibida por Putin), afrontando sem tréguas não só o Kremlin, mas também o próprio
patriarca Kirill, de Moscovo. Em consequência, os bispos decidiram pôr em
exercício o estatuto de “autocefalia canónica”, isto é, a independência face ao patriarca Kirill, uma
prerrogativa que lhes foi outorgada pelo patriarca máximo Bartolomeu, de
Constantinopla, primus inter pares.
O
conflito aceso dos bispos, (na vanguarda
está Onuphre, bispo de Kiev) chega ao extremo de suspender o nome de Kirill nas
celebrações litúrgicas. Em suporte da autoridade que reclamam, as igrejas ucranianas
invocam o primado da fé, pois que a Ucrânia é considerada o “berço do
cristianismo eslavo”. Ademais, no Sínodo episcopal da Ucrânia, realizado em 24
de Fevereiro de 2022, foi exigida a “soberania do Estado e a integridade
territorial do seu país”, ajuntando o pedido oficial ao patriarca de Moscovo “para
apelar aos dirigentes da Federação da Rússia o cessar imediato das hostilidades”.
As
tensões alastram-se pelos países ex-soviéticos, sobressaindo o testemunho de
Innocent, bispo de Vilnius, afirmando que a Lituânia está abertamente contra a
posição de Kirill, o mesmo acontecendo com as igrejas fundadas por emigrantes
russos em Amsterdão e na Bélgica.
A
guerra de Putin arrastou a guerra dentro da própria Igreja Ortodoxa. Isto
acontece quando os responsáveis religiosos se tornam presas venáveis nas mãos
dos políticos. Mas é aí, no remover das ondas alterosas, que se distinguem as
identidades: os que permanecem fiéis à causa do Cristo do Evangelho e os que se
vendem pelos trinta dinheiros sujos dos ditadores e seus aprendizes. É aí que
se purificam as religiões, muitas e tantas vezes à custa da prisão de padres,
do exílio de bispos, do extermínio misterioso de cristãos, de homens e mulheres
que lutaram por uma digna cidadania.
Onde
é que já vimos isto?...
Informem-se,
leiam a história não muito longínqua do nosso país, da nossa ilha.
Quem
dera fosse ouvida lá nos confins das igrejas e ermidas ucranianas, entre cinzas
e mortalhas, esta voz dirigida aos verdadeiros crentes e aos seus lídimos pastores,
caminheiros da Vida, combatentes pela Verdade:
VITÓRIA
UCRÂNIA, VITÓRIA !!!
31.Mar/01.Abr.22
Martins Júnior
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