É
tremendamente exaltante ver passar diante dos nossos olhos as mil sombras de David Bowie. Toda a sua vida
foi um desfile perturbador e, ao mesmo tempo, repousante, em que perpassam as
infinitas hipóteses de que é capaz a
condição humana do estar aqui e agora.
Perturbador e repousante, digo, porque nele tudo é disperso e tudo é inteiro.
Uno e múltiplo. Inesgotáveis são as definições para qualificar uma vida-mistério e alma desnuda. De tantas e
tão eloquentes --- desde génio musical, artista total (como lhe chamam criativos
e jornalistas) mestre da invenção (assim classificou David Cameron o seu compatriota
britânico) --- destaco o título do colunista de Le Monde: “a lenda viva” e o “extraterrestre”.
Dispenso-me de elencar a sua multiforme
criação musical, com as mais talentosas canções, todas diferentes e todas
iguais, por que inspiradas na mais genuína música popular, passando pelos mais diversos
géneros, o music-hall, o folk hippie, o glam-rock, a canção soul, a funk, a
pop, a música electrónica. Dou também por adquirida do conhecimento público a sua
versatilidade artística, como actor e
produtor no teatro e no cinema, estrela
nos desfiles da moda, visionário do futuro quando antecipou a queda do Muro de
Berlim, na chamada trilogia berlinense Low (1977) Heroes (1978) e Lodger (1979).
Homem de causas, bateu-se pela igualdade de género, no desconcertante
desempenho de Ziggy Standurt /1972).
Mais que Cidadão do Mundo, ele foi o
Caminheiro da História, pois que nele se condensa, sob diversos cambiantes, o
mistério do Homem e os seus fantasmas. Até no próprio leito da morte, ele
incarnou a incomensurável dimensão da alma humana. Durante 18 meses arrastou
consigo o ferrete da morte anunciada pelo cancro que manteve sempre no mais secreto
sigilo até aquele dia em que editou o seu último álbum premonitório Blackstar, 8 de Janeiro, vindo a falecer em 10, mas a morte,
só anteontem, 11, foi dada a conhecer ao mundo. A força anímica com que gravou
o videoclip em que aparece na figura bíblica de Lazzarus, redivivo na “tumba” de uma cama de hospital, evidencia a
síntese do homem-espectáculo (com 50
anos de carreira e mais de 140 milhões de álbuns vendidos) envolto no sudário
do homem-mistério, a definição que
revestiu toda a sua vida.
Três
dias após a sua morte, aos 69 anos de idade, aqui presto aminha homenagem e o
preito de gratidão pela esteira de luz que nos deixou. “Nunca mais vai haver
David Bowie, escreveu um seu admirador. Mas vai haver sempre quem aprenda com
ele a ser não só aquilo que é mas aquilo que gostaria de ser”. Levaram-no aos braços dois geniais companheiros de jornada, Paul Bley, pianista e compositor, e Pierre
Boulez, compositor e maestro, que recentemente nos deixaram
Envolvo
na mesma homenagem duas memórias eternas da cultura portuguesa: Antero de
Quental e Fernando Pessoa. Do primeiro, escreveu Eça de Queiroz: “Antero tinha
alma para sete famílias”. Embora noutro registo, bem poderia escrever-se igual
epitáfio sobre a lápide de David Bowie.
De
Pessoa, conhecemos a genialidade --- diria também “extraterrestre” --- dos seus
heterónimos. Descobrindo o misterioso caleidoscópio a que se reconduzem a vida e a obra de David Bowie, estamos seguros
de afirmar que ele corporizou em carne
viva --- e não só em páginas de laboratório --- a abissal heteronímia da
condição humana.
13.Jan.16
Martins Júnior
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