domingo, 17 de janeiro de 2016

OS ANIMAIS DE SANTO ANTÃO: de diabolizados a protegidos


Tivesse eu o engenho narrativo de Eça de Queiroz e ficaríamos aqui largo tempo a decifrar o enigma do subtítulo deste escrito de fim-de-semana. É que hoje decidi entrar nas dunas do deserto e surpreender os animais de Santo Antão ,  precisamente neste dia 17 de Janeiro, a festa do nosso eremita, também chamado de padroeiro dos anacoretas, isto é, daquelas figuras do hagiológio cristão que fugiram do mundo para esconder-se nos desertos ou nas mais inóspitas  montanhas, num desígnio de alcançar a ascese plena  e conquistar a perfeição cristã.
Por isso, é também o dia em  que as pessoas mais crédulas e, por que não dizê-lo, mais supersticiosas, trazem os seus bichinhos ao adro das igrejas para tomarem, uma vez ao ano, um mini-duche de água benta, ou seja, para receberem a bênção divina que, assim crêem, o abade Santo Antão lhes prodigaliza por meio do sacro hissope.
Falei no nosso Eça, naquela inimitável sátira que dá pelo nome de A Relíquia,  porque a interpretação da devoção deste dia 17 tem tanto de pitoresco quanto de divertido. Ridicule mais charmant, diriam os  franceses. Trata-se de um daqueles fenómenos de prestidigitação recorrentes na história dos costumes em que uma determinada realidade se transforma no seu contrário, em virtude das versões sucessivamente recontadas e, por via disso, capciosamente adulteradas.
Vamos ao caso.
Dizem os cronistas do séculos IV-V (entre os quais Santo Atanásio,  o biógrafo de Santo Antão) que este eremita (viveu entre 251-356) tendo-se evadido para o deserto, era acometido, dia e noite, pelo demónio, que se disfarçava aos seus olhos, umas vezes  em traje de mulher nua, outras vezes em temerosos animais --- leões, ursos, panteras, porcos bravos, serpentes --- numa campanha obsessiva para  desassossegar o nosso santinho e impedi-lo de entregar-se à oração.
Eram, portanto, os animais a configuração do diabo provocador  das mais vis tentações mundanas e às quais o atormentado anacoreta esconjurava com o sinal da cruz, mergulhando cada vez mais  em cilícios e penitências.  Esta é a versão que percorreu toda a Idade Média, chegando a inspirar, já perto de nós, o romancista Gustave Flaubert (1821-1880) a escrever “As Tentações de Santo Antão”. É também este o motivo pelo qual Santo Antão é representado com um cerco de animais em seu redor.
Mas --- oh potentíssimo fenómeno de transfiguração (para não dizer,
de manipulação) que levou o devocionismo popular, alimentado por pregadores especiosos, a transformar os inimputáveis animais diabolizados em mansos cordeiros aconchegados à manta rota do monge do deserto! É obra. É o que poderá classificar-se habilmente  de “o enigma saltou o muro”, saíu por cima e conseguiu branquear a imagem primitiva.
         Tudo certo, hilariante e optimista.  All is well when ends well -- -tudo está bem quando acaba bem. E viva a festa!  Mas (e aqui é que entraria a veia sarcástica do autor  d’ A Relíquia) as pessoas continuam a levar à frente de Santo Antão porcos, vacas, galinhas, cães e gatos, cuidando que lhe fazem homenagem, quando, a crer nas crónicas originais, isso seria castigo redobrado à sua ascese de salvação, trazendo-lhe à memória traumas demoníacos, abafados durante 18 longos séculos. Por outras palavras, os positivos de hoje revelam o contrário dos negativos de ontem.
Fiquemos  hoje por aqui. Mas não esqueçamos que este episódio inofensivo é-o também paradigmático de tantos desvios e deturpações a que foram violentados nobres ideais e sublimes propostas de líderes espirituais, a começar pelo nosso J:Cristo, os quais assistem, impotentes, à safra dos vendilhões da alma humana que “viram o bico ao prego”, sabendo que o fazem por traição à Verdade e em aumento do seu pecúlio.  Nestes casos, porém,  não há nada de hilariante, pelo contrário, tudo é criminoso.    
Acarinhemos os bichinhos do Santo Antão do Egipto. É o seu dia.

17.Jan.16

Martins Júnior

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