Tivesse
eu o engenho narrativo de Eça de Queiroz e ficaríamos aqui largo tempo a
decifrar o enigma do subtítulo deste escrito de fim-de-semana. É que hoje
decidi entrar nas dunas do deserto e surpreender os animais de Santo Antão , precisamente neste dia 17 de Janeiro, a festa
do nosso eremita, também chamado de padroeiro dos anacoretas, isto é, daquelas
figuras do hagiológio cristão que fugiram do mundo para esconder-se nos
desertos ou nas mais inóspitas montanhas,
num desígnio de alcançar a ascese plena e conquistar a perfeição cristã.
Por
isso, é também o dia em que as pessoas
mais crédulas e, por que não dizê-lo, mais supersticiosas, trazem os seus
bichinhos ao adro das igrejas para tomarem, uma vez ao ano, um mini-duche de
água benta, ou seja, para receberem a bênção divina que, assim crêem, o abade
Santo Antão lhes prodigaliza por meio do sacro hissope.
Falei
no nosso Eça, naquela inimitável sátira que dá pelo nome de A Relíquia, porque a interpretação da devoção deste dia 17
tem tanto de pitoresco quanto de divertido. Ridicule
mais charmant, diriam os franceses.
Trata-se de um daqueles fenómenos de prestidigitação recorrentes na história
dos costumes em que uma determinada realidade se transforma no seu contrário,
em virtude das versões sucessivamente recontadas e, por via disso,
capciosamente adulteradas.
Vamos
ao caso.
Dizem
os cronistas do séculos IV-V (entre os quais Santo Atanásio, o biógrafo de Santo Antão) que este eremita
(viveu entre 251-356) tendo-se evadido para o deserto, era acometido, dia e
noite, pelo demónio, que se disfarçava aos seus olhos, umas vezes em traje de mulher nua, outras vezes em temerosos
animais --- leões, ursos, panteras, porcos bravos, serpentes --- numa campanha obsessiva
para desassossegar o nosso santinho e
impedi-lo de entregar-se à oração.
Eram,
portanto, os animais a configuração do diabo provocador das mais vis tentações mundanas e às quais o
atormentado anacoreta esconjurava com o sinal da cruz, mergulhando cada vez
mais em cilícios e penitências. Esta é a versão que percorreu toda a Idade
Média, chegando a inspirar, já perto de nós, o romancista Gustave Flaubert (1821-1880)
a escrever “As Tentações de Santo Antão”. É também este o motivo pelo qual
Santo Antão é representado com um cerco de animais em seu redor.
Mas
--- oh potentíssimo fenómeno de transfiguração (para não dizer,
de
manipulação) que levou o devocionismo popular, alimentado por pregadores
especiosos, a transformar os inimputáveis animais diabolizados em mansos
cordeiros aconchegados à manta rota do monge do deserto! É obra. É o que poderá
classificar-se habilmente de “o enigma
saltou o muro”, saíu por cima e conseguiu branquear a imagem primitiva.
Tudo certo, hilariante e optimista. All is well
when ends well -- -tudo está bem quando acaba bem. E viva a festa! Mas (e aqui é que entraria a veia sarcástica
do autor d’ A Relíquia) as pessoas continuam a levar à frente de Santo Antão
porcos, vacas, galinhas, cães e gatos, cuidando que lhe fazem homenagem,
quando, a crer nas crónicas originais, isso seria castigo redobrado à sua
ascese de salvação, trazendo-lhe à memória traumas demoníacos, abafados durante
18 longos séculos. Por outras palavras, os positivos de hoje revelam o
contrário dos negativos de ontem.
Fiquemos
hoje por aqui. Mas não esqueçamos que
este episódio inofensivo é-o também paradigmático de tantos desvios e deturpações
a que foram violentados nobres ideais e sublimes propostas de líderes
espirituais, a começar pelo nosso J:Cristo, os quais assistem, impotentes, à
safra dos vendilhões da alma humana que “viram o bico ao prego”, sabendo que o
fazem por traição à Verdade e em aumento do seu pecúlio. Nestes casos, porém, não há nada de hilariante, pelo contrário,
tudo é criminoso.
Acarinhemos
os bichinhos do Santo Antão do Egipto. É o seu dia.
17.Jan.16
Martins Júnior
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