Nada
melhor que anedotas e caricaturas para
caracterizar estados de alma ou complexos atávicos. Vou dar quatro rápidos “anúncios”,
para não dizer spots, suficientemente
esclarecedores.
O
primeiro, passado nesta nossa terrinha ilhoa, refere que um chorudo negócio de
dois aldeões ficou marcado para o almoço, mas porque um deles só admitia à mesa
vinho seco e o outro só vinho tinto, o negócio borrou.se… O segundo
conta-nos que a secretária de trabalho do competente notariado que registaria o
contrato de compra e venda de um valioso prédio entre dois proprietários ricos,
foi ela, a mesa, responsável pela frustração do negócio. Causa: o prometido comprador,
educado por uma beata catequista, fugiu desabridamente porque a dita mesa tinha um arranjo floral onde
predominavam dois esbeltos antúrios ostentando garbosamente o seu natural “ex-libris”…
O terceiro caso diz respeito a um jogo
de futebol feminino em que uma das equipas se apresentou de calções e a outra, que
entrou em campo, de calça comprida até
aos pés e camisola afogada até ao pescoço, exigiu que todas se equipassem bem
compostas, pois assim lhes ensinara uma púdica tia religiosa e solteirona. Lá
se foi o campeonato… O último caso
fala-nos de dois compadres à roda de uma mesa, onde a garrafa de vinho se encontrava numa situação tal que um deles
dizia que ela estava meio-vazia e o outro teimava que estava meio-cheia. Foi
tão acesa a discussão que nenhum quis provar o precioso conteúdo da garrafa. No entanto, sempre lá concluíram o
negócio aprazado.
Mudem os nomes e os trajes e ponham em
seu lugar o episódio grotesco do almoço protocolar entre Rouhani, o presidente
do Irão, e François Hollande, de França, marcado para ontem, o qual acabou por
ser cancelado devido à exigência dos muçulmanos que proibiram o seu presidente
de sentar-se à mesa onde houvesse uma
garrafa de vinho, uma só que fosse. Ordens sagradas de Maomé! Sem comentários. Aí é que se ouviram as
paredes do Eliseu a rir, divertidas, enquanto ecoava o velho ditado: Ridicule mais charmant, ou então,
encostando o caso às Précieuses Ridicules,
de Molière. Apesar de tudo, fez-se o negócio de muitas dezenas de milhões,
como de resto, um dia antes em Itália.
É caso para dizer: a cada qual, o seu vinho e
a cada qual a sua droga…
Este pitoresco episódio levou-me até
África, aquando da guerra colonial em Cabo Delgado, extremo norte de Moçambique, numa tarde em que o, aqui
correspondente ao regedor da sanzala, veio ter comigo e balbuciou-me ao ouvido:
“Tènenti, zungo (patrão), trá-me madji di lizebaua”. Perguntei a alguém o
que era aquilo de ”água de Lisboa”, sendo então informado que se tratava de vinho tinto. Lá
comprei a garrafa na messe de oficiais, dirigi-me ao aldeamento (onde dava as
chamadas “aulas regimentais” aos lindos
petizes negros… que saudades!), chamei à parte o dito “regedor” e pu-lo
à prova: “Mas você é muçulmano e o Profeta proíbe você de beber vinho”, ao que
ele, outra vez ao ouvido, depois de observar que ninguém topara a cena,
respondeu baixinho: “Mas eu bebo de noite”.
Percebi logo. Até neste esquelético cocuana (velho) se confirma a hipocrisia
oficial dos quadros do poder --- lá e cá! --- em que o mais importante é preservar as aparências, a
letra da lei, enfim, o político-religiosamente correcto. Só queria saber qual a
marca do vinho e qual o éden em que plantou Maomé as muçulmanas parreiras, capitosas e fulminantes, que levam
um homem a cinturar-se de granadas e fazê-las explodir, matando dezenas, centenas,
milhares de vítimas inocentes…
Até onde é capaz de levar-nos o atavismo inquestionado! Voltando ao mesmo sítio,
impressionava-me ver as crianças comer a feijoada que lhes levávamos do rancho
geral e elas, escrupulosamente, separavam a dobrada e só comiam o feijão e a
batata. Perguntei-lhes uma vez por que razão procediam assim. E a resposta veio
directa: “O pai não deixa”. Lembrei-me do (já aqui referido) relato bíblico daquela mãe que se entregou à
morte mais violenta, ela e os seus sete filhos Macabeus, só por se recusarem a
comer a carne de porco que o rei Antíoco lhes oferecera. Há milhares de anos! A
força cega das crenças não escrutinadas, diríamos, dos dogmas, também impostos, mutatis
mutandis, pela Igreja Vaticana!
Há quem discuta se Hollande terá feito
bem cancelar o almoço e o jantar. O Sim ou o Não defensáveis são. Inclino-me, no entanto, para o Sim: outro bem maior estava em jogo, ou
seja, a histórica visita de presidente iraniano à Europa, após o acordo nuclear
e o levantamento de sanções, prenúncio de um tempo novo na história das
civilizações. Na senda da comprovada filosofia que fez escola, “ por vezes, é
preciso dar um passo atrás para ganhar dois passos à frente”! Mas… sem tacticismos,
apenas com vista à prossecução dos verdadeiros valores que dignificam a espécie
humana.
29.Jan.16
Martins
Júnior
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