Abrem o olho as “câmeras” televisivas e
enchem-se folhas inteiras com minudências de circunstância, a que dão títulos
garrafais, como inovação, originalidade, caso único. Mas, quantas vezes, fazem
orelhas de mercador a factos que, esses sim, trazem algo de novo, singular,
eminentemente criativo e contributivo para a construção do corpus social!
Vi e senti “ao vivo” no último
fim-de-semana um fenómeno único na minha experiência quase octogenária: a
apresentação de um livro em que não houve um avental falante e galante a abrir
a cena. Nem o próprio Autor se deu ao afã narcísico de ler e interpretar uma só
linha do seu texto. Para insólito espanto meu, os protagonistas foram os participantes no acto, sem atavios nem
holofotes nem os oficiais jarrões amovíveis das aberturas e fechaduras das
solenes comemorações. Tudo tão simples, tão tangente, tão íntimo, como quem
fala ao coração de quem se ama.
Aconteceu na Câmara Municipal do
Funchal, que cedeu o espaço para o lançamento de mais um livro de António Barroso Cruz, ESTÓRIAS
A NU E CRU, publicado pela “Liberal” Editora. Traumas sociais,
fracturas abertas no solo que habitamos, tais como o drama dos refugiados, a
violência doméstica, a pedofilia infantil no santuário eclesiástico, são alguns
dos capítulos candentes deste livro, escrito em estigmas “nus e crus” e
moldados num estilo directo, por vezes corrosivo, queirosiano.
O Autor dispôs a sala de tal forma que
ninguém esteve de costas para ninguém. Olhos nos olhos e ombro a ombro, uma
energia palpitante corria por todos e enchia a sala como o ar que se respira.
António Cruz, sem qualquer introdução formal, deu a palavra aos presentes.
Falaram as vítimas de violência doméstica, desdobrando sem tabus o sofrimento
silenciado anos e anos nas “prisões” da agressão sem queixa. Passaram, no
depoimento de quem presencialmente acompanhou e relatou, os gritos dos foragidos da guerra. Tocou-se
sem hipocrisia o escândalo da pedofilia na Igreja, as causas a montante e os
crimes a jusante, o sigilo cúmplice da hierarquia e a veemência do Papa
Francisco na condenação dos abusadores.
Mas o Autor das ESTÓRIAS não se limitou a ouvir
a narrativa dramática dos factos. Interpelou, face a face, os presentes,
penetrando no íntimo das nossas convicções e da nossa consciência latente, até
ao limite de interrogarmo-nos a nós próprios sobre o contributo efectivo que
podemos dar na solução das questões em apreço. Observei atentamente e surpreendi-me
com a capacidade de liderança do promotor deste encontro na condução dos
diálogos, tão delicada e necessariamente respeitadora da liberdade e da
privacidade de quem se propôs intervir.
Devo dizer que nunca em tempo algum –
nem mesmo nos retiros ou em assembleias colectivas – assisti a uma tão
pura elevação espiritual, incisiva e dinâmica, ficando ali envolvido entre a
psicanálise, a catarse e a confissão. Deste tríptico interior, voltado para o
exterior - a vida e a acção - sobressaiu uma leveza psíquica, uma libertação
indizível e reconfortante, sublinhadas no final pela poesia e pela canção, como
o fruto mais saboroso daquela estância transparente.
O sortilégio do momento esteve na
verificação deste estranho paradoxo: o livro, afinal, não foi apresentado. Ele
próprio se apresentou. Melhor, talvez: os
destinatários daquelas páginas vivas foram os oradores natos de tão impressiva mensagem.
Aqui reside a inovação criadora e, com ela, o meu apreço por tão singular
iniciativa, que merece continuidade,
para contraponto da vacuidade campanuda
dos tempos que correm.
29.Nov.16
Martins Júnior
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